CAPÍTULO UM
1964 – REVOLUÇÃO OU GOLPE ?
A QUEDA DE JOÃO GOULART

Pesquisa e redação: Paulo Victorino
pitoresco@intervista.com.br

     Vetado pelos ministros militares, odiado pelos conservadores, que o queriam ver longe do governo, com seu poder dilacerado pela emenda parlamentarista, e sem pulso suficiente para conter os radicais da esquerda, o presidente João Belchior Marques Goulart foi vítima de multipla conspiração, desde sua posse, ocorrida em 7 de setembro de 1961.

     No princípio, eram movimentos ocultos, contidos em certa parte, pela atuação moderada do Gabinete formado pelo primeiro-ministro Tancredo de Almeida Neves. Mas, com a volta do presidencialismo, recolocando todos os poderes de governo nas mãos do presidente da República, e com o recrudescimento da ação das esquerdas, a conspiração se tornou aberta, num confronto entre as forças conservadoras e aquelas ditas revolucionárias, que disputavam o mesmo espaço. Escreve Francisco de Assis Silva, em seu livro "História do Brasil":

     "Todo mundo conspira: direita e esquerda; civis e militares; moderados e radicais; operários e camponeses. Os governadores Ademar de Barros (SP), Magalhães Pinto (MG) e Carlos Lacerda (GB) conspiravam com a ala militar antijanguista. O golpe estava em andamento. A direita congregava-se em organizações como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), financiados pelos Estados Unidos, e outras tantas que se uniram para impedir as reformas sociais."

     Verdade é que o presidente João Goulart em nada contribuía para baixar a temperatura efervescente nos meios políticos e na caserna: ignorava o Congresso e a ala conservadora, procurando impor suas reformas baseado no lastro da popularidade de que dispunha, e na expressiva votação que obtivera nas eleições, ocasião em que quebrou a unidade partidária, fazendo-se vice-Presidente pelas esquerdas, junto com Jânio, que representava a ala mais reacionária da política brasileira. Era a dobradinha "Jan-Jan" (Jânio e Jango).

     Embora dispersa em vários comandos civis e militares, principalmente no Rio de Janeiro, em São Paulo e Minas Gerais, a oposição ao governo reconhecia a ascendência das lideranças do Rio, onde se achava o general Artur da Costa e Silva, e para onde, mais tarde, foi removido o general Humberto de Alencar Castelo Branco, que deixou o comando do 4º Exército, em Recife, para assumir o comando do Estado Maior do Exército (EMEx), onde eram maior o poder de articulação.

     Correndo por fora da raia, como um franco atirador, estava o general Olímpio Mourão Filho, com opiniões próprias, infenso a qualquer orientação vinda de fora de seu comando, ele mesmo capaz de desequilibrar o plano integrado das demais forças que participavam da conspiração anti-Jango. E foi Mourão que, na madrugada de 31 de março de 1964, por sua própria conta e risco, e sem conhecimento dos demais, saiu de Juiz de Fora com um punhado de jovens soldados inexperientes para a derrubada do governo, antecipando em pelo menos 20 dias o movimento que deveria eclodir a partir do Rio de Janeiro.

     Revolução ou golpe ? Essa discussão até hoje está em aberto. Para os militares que participaram do movimento, foi uma revolução objetivando exterminar o comunismo que atentava contra as liberdades democráticas; para a ala esquerda, não pairavam dúvidas de que se tratava de um golpe bem articulado para impedir a realização das reformas; para Mourão Filho, teria sido uma revolução legítima, partindo de Minas Gerais, a qual chegou vitoriosa ao Rio de Janeiro, mas lá encontrou o general Costa e Silva já instalado no gabinete do ministro da Guerra, e o general Castelo Branco virtualmente empossado presidente da República. Era o que ele próprio chamou de "golpe de 1º de abril".

     É importante nos determos nos acontecimentos que levaram ao movimento vitorioso de 1964 que, rapidamente, afastou as lideranças civis, ou colocou-as a seu serviço, dando início a uma série de governos militares que se sucederam no poder até o ano de 1985.

Como era estranho esse general Mourão

     Olímpio Mourão Filho (1900-1972) nasceu em Diamantina (MG), a mesma cidade de Juscelino Kubitschek. É a única identidade entre os dois. Ao contrário de JK, Mourão Filho tinha índole belicosa e um temperamento irrefreável, transcorrendo toda sua vida ao meio de conspirações, desenvolvidas abertamente, seguindo sua própria avaliação e em prejuízo de qualquer opinião que não a sua própria.

     Se tivermos de compará-lo a alguma figura história, poderíamos melhor aproximá-lo de Tiradentes, outro mineiro notável que assumiu como seus os ideais da Conjuração Mineira e saiu pelas cidades de seu Estado e do Rio de Janeiro pregando a queda do Império, descuidando-se do sigilo, elemento essencial para a vitória de qualquer movimento contestatório.

     Em 1937, como capitão do Exército, Mourão identificou-se com a Ação Integralista Brasileira e teve seu nome envolvido no Plano Cohen. Em verdade, tal plano, de pretensa ação comunista para tomada do poder, foi redigido por ele próprio, mas apenas para treinamento dos integralistas no combate ao comunismo. Por ardil do presidente Getúlio Vargas, auxiliado pelos generais Góis Monteiro e Caiado de Castro, a peça foi tomada como verdadeira e serviu de pretexto para o fechamento do Congresso Nacional e a instituição de um novo regime, o do Estado Novo. O maior prejudicado, além da nação brasileira, foi o próprio Mourão, que, por quase trinta anos, teve sua carreira militar bloqueada, enquanto seus companheiros de turma subiam rapidamente.

     Em 1956, Juscelino, finalmente, promoveu-o a general-de-brigada (duas estrelas), ficando estacionado nessa posição durante cinco anos. E, como general-de brigada, em 1961, voltou-se contra os ministros militares, que se opunham à posse de João Goulart, seguindo para a casa do marechal Teixeira Lott, onde se encontravam outros militares, favoráveis à posse de Jango, dentro dos termos da Constituição. Lott já havia emitido um manifesto, publicado pelos jornais matutinos, e vinha com uma outra declaração, quando Mourão, irritado, contestou:

     "Marechal, chega de manifesto! Põe tua farda, vou em casa pôr a minha, tocamos para a Vila Militar e vamos revoltar as tropas!" Lott recusou-se a fazê-lo. Pior para ele que, horas depois, estava preso, por ordem de seu amigo e companheiro, o ministro da Guerra, general Odílio Denys.

     João Goulart foi finalmente empossado e, pouco depois, Mourão Filho passou a conspirar contra o novo Presidente, primeiro em Santa Maria (RS), depois em São Paulo e finalmente em Juiz de Fora, causando mal-estar e até inimizades dentro nas hostes antijanguistas. Vitorioso o movimento de 1964, voltou-se também contra este, considerando que a revolução foi traída com a permanência dos militares no poder. Já não tinha, porém, qualquer comando, pois, ainda em 1964, caiu na compulsória, reformando-se como general de divisão.

     Enquanto outros de sua turma se aposentaram com o título de marechal, Mourão foi para a reserva como general-de-divisão (três estrelas), quase ignorado nas referências sobre o movimento militar que resultou na instituição da Quarta República. Uma ou outra enciclopédia abre uma entrada com seu nome e, assim mesmo, para uma citação de duas ou três linhas, sem se deter em sua biografia ou na importância que ele teve para o sucesso do movimento.

Em Santa Maria, o "Plano Junção"

     Promovido a general-de-brigada (duas estrelas) em 7 de setembro de 1956, já no mês seguinte Mourão assume o comando da Infantaria Divisionária em Belo Horizonte, onde não fica mais que uns poucos meses. Seu temperamento guerreiro incomodava muito e Juscelino nomeia-o para cargos burocráticos, primeiro na Assistência Social do Exército e, depois, na direção dos Serviços de Radiodifusão (hoje DENTEL), subordinado ao Departamento de Correios e Telégrafos.

Congelado por vários anos, só em 21 de setembro de 1961 volta às atividades militares, tomando posse como comandante da 3ª Divisão de Infantaria, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Pouco tempo depois, já desconfiava não só do presidente João Goulart como também do governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, achando que ambos pretendiam aplicar um golpe de estado com subseqüente comunização do governo. E, assim, não tarda em reiniciar a atividade conspiratória, traçando o "Plano Junção", pelo qual pretendia levantar o Exército, assim que pressentisse qualquer atitude de Jango para o fechamento no regime. Uma tarefa nada fácil, já que o comandante do 3º Exército era o general Jair Dantas Ribeiro, francamente janguista.

 

Parlamentarismo instável

 

     Rememoremos. O parlamentarismo brasileiro foi criado como um casuismo para cortar os poderes do presidente da República e tornar mais palatável a presença de Jango, retirando-lhe os poderes de governo e transformando-o numa "rainha da Inglaterra".

     Votado às pressas, o Ato Adicional, ou emenda parlamentarista, apresentava graves lacunas, que impediam sua execução.

     Primeiro: adotou-se a fórmula alemã, em que o Presidente indica o Primeiro-Ministro, a ser aprovado pelo Congresso. Aceito o nome, o Congresso indica o Ministério, que deve ser aprovado pelo Presidente. Com um congresso conservador e um presidente tido como reformista, cria-se um impasse difícel de ser vencido.

     Segundo: já que o Gabinete parlamentarista é composto sobretudo de parlamentares, que precisam reeleger-se para garantir sua permanência no Ministério, teria de ser suprimida, na Constituição, a exigência de desimcompatibilização 90 dias antes das eleições. Não o fizeram.

     Terceiro: Se o presidente da República é apenas chefe de Estado, e o Primeiro-Ministro chefe de Governo, com ascendência sobre os ministros militares, então é o Primeiro-Ministro e não o Presidente quem deve ser considerado chefe supremo das Forças Armadas. Também isso não foi modificado.

     Estava armado o cenário para a grande trapalhada. Em 30 de junho de 1962 (três meses antes das eleições parlamentares), cai o Gabinete de Tancredo Neves, cujos ministros eram, quase todos, candidatos à reeleição. Sem entendimento entre executivo e legislativo, na prática, o poder voltou às mãos de João Goulart, chefe supremo das Forças Armadas, situação que perdurou por dez dias.

     O primeiro nome indicado para a chefia do Gabinete foi o do jurista Santiago Dantas, prontamente rejeitado pelo Congresso que o considerava muito à esquerda. Jango, então, concordou em indicar para Primeiro-Ministro o presidente do Congresso, Auro Soares de Moura Andrade (conservador) mas, em seguida, usando das atribuições que lhe eram conferidas, recusou o ministério indicado pelo Congresso, por achá-lo conservador demais para as reformas que tinha em mente.

     Finalmente, executivo e legislativo se fixaram no nome de Brochado da Rocha, mais à esquerda que Santiago Dantas. É claro que a ninguém interessava essa nomeação, que se constituiu em novo casuísmo, enquanto, paralelamente, se procurava detonar o parlamentarismo, com a realização de um plebiscito.

     O gabinete de Brochado, empossado em 9 de julho de 1982, foi substituido pelo de Hermes Lima em 17 de setembro e este último se dissolveu em 23 de janeiro de 1963 quando, de conformidade com plebiscito realizado em 6 de janeiro, o Brasil voltou a adotar o Presidencialismo, concentrando nas mãos de Jango ambos os poderes, de chefe de Estado e de chefe de Governo.

Testando o Plano Junção

     Concluindo que a recusa do Gabinete apresentado por Auro Soares era o primeiro passo de Jango para um golpe de estado, o general Mourão, no comando da 3ª Divisão de Infantaria (Santa Maria-RS) pôs em execução o "Plano Junção" levando ao ar a rede de emergência, o que originou uma reprimenda e pedido de explicações por parte do 3º Exército. Mourão desculpou-se, retirou do ar a rede de emergência, mas ordenou que todos os setores envolvidos permanecessem na escuta, no aguardo de novas instruções de comando.

     Em sentido oposto, caminhava o comandante do 3º Exército, general Jair Dantas Ribeiro que chamou a Porto Alegre todos os seus comandados diretos, inclusive o general Mourão, propondo-lhes a emissão de um manifesto, exigindo que o Congresso a aprovasse a realização de um plebiscito. Não obtendo apoio, assinou o manifesto sozinho, enviando cópia aos demais comandos com a ordem de que o comunicado fosse lido publicamente nos quartéis.

     A atitude do general Jair não era isolada, mas um repique de manifesto feito anteriormente pelo comandante do 1º Exército (Rio de Janeiro), general Osvino Ferreira Alves. Os outros dois comandos (2º Exército em São Paulo e 4º Exército em Recife) se revelavam aparentemente neutros.

     Com a desistência de Auro Soares à chefia do Gabinete, e com a indicação de Brochado da Rocha para compor um novo Ministério, foi jogada água na fervura. Jair Ribeiro recolheu-se às suas atividades de comando e Mourão desativou o Plano Junção, registrando todo inconformismo em seu diário particular, em data de 5/7/62 – quinta-feira:

     "Hoje de tarde soubemos que o Auro se demitira. Cantou de galinha o homem. Se ele tivesse reagido, João Goulart fechava o Congresso e iria levar o maior susto da vida dele, porque ali de Santa Maria ia partir fulminante o movimento que poria para fora ele e o Brizola."

     No remanejamento de comandos, em 15 de março de 1963, o general Mourão, já promovido a general-de-divisão (três estrelas), assumiu a 2ª Região Militar, em São Paulo, subordinado ao general Pery Constant Bevilacqua, descedente de Benjamin Constant e comandante do 2º Exército. "Exultei, porque desejava conspirar em São Paulo", escreveu Mourão em seu diário. Mas em Santa Maria, deixou em andamento um IPM-Inquérito Policial-Militar contra 40 sargentos. Motivo: conspiração.

Em São Paulo, o blefe

     Conquanto a cerimônia de posse tenha sido concorrida, com a presença de altas autoridades, inclusive do governador Ademar de Barros, Mourão Filho descobriu logo que não lhe seria possível agir em São Paulo com a mesma desenvoltura com que o fazia em Santa Maria.

     Alguns, como Assis Chateaubriand, dos Diários Associados, deram-se apoio, reservado mas efetivo; outros, como Ademar, desconversavam e evitavam a ação de Mourão, que consideravam predatória e perigosa; seu superior, general Pery Bevilacqua, que também viera transferido do Rio Grande do Sul, tentava refrear-lhe os ímpetos, que poderiam precipitar os acontecimentos, em prejuízo à causa a que se dedicavam. E Júlio Mesquita Filho, diretor do Estadão, jornal que se constituía no carro-chefe da conspiração em São Paulo, nada fazia para esconder sua antipatia ao açodado general.

     Pior do que isso, é que já chegavam aos ouvidos do presidente João Goulart, e aos setores ligados a ele, as notícias sobre as atitudes de Mourão Filho, criando-lhe uma situação deveras embaraçosa.

     Foi então que ocorreu-lhe aplicar um blefe para acalmar as hostes governistas e escolheu para isso as comemorações do aniversário da Revolução Constitucionalista, em 9 de julho, nas quais deveria comparecer, pela sua unidade e também representando o comandante do 2º Exército. Esperava que pelo menos um orador fizesse um paralelo entre a revolução de 1932 e os dias atuais, atingindo verbalmente o presidente João Goulart.

     Durante a cerimônia, não precisou esperar muito. A certa altura, a palavra foi dada a Waldemar Ferreira, um dos líderes civís de 32, que iniciou o discurso dizendo: "Esta solenidade é um grito de alerta a toda a nação, no momento em que se prepara um movimento comunista, chefiado do Palácio da Alvorada pelo próprio presidente da República." É o próprio Mourão quem conta:

     "Levantei-me com um gesto espalhafatoso, o gorro na cabeça e com os dois braços fazendo gestos para os oficiais, gritei bem alto: ‘Levantem-se, vamos nos retirar daqui. Não admito insultos contra o chefe das Forças Armadas, presidente João Goulart’."

     O truque deu certo. Havia transmissão ao vivo pelo rádio e toda a imprensa paulista estava dando cobertura à solenidade. Ademar mandou um mensageiro procurá-lo na sala onde havia se alojado, garantindo que faria um discurso desmanchando tudo, e pedindo-lhe que, após, voltasse à cerimônia. E assim aconteceu.

      No Palácio do Planalto, a repercussão não podia ter sido melhor. O general Mourão Filho passou a ser considerado um elemento pró governo e em tal grau que, no mês seguinte, recebia como bônus a transferência para uma função da mais alta confiança, qual seja, o comando da 4ª Região Militar e da 4ª Divisão de Infantaria, em Juíz de Fora, desalojando dessa posição o general Carlos Luís Guedes, elemento muito chegado ao governador de Minas, Magalhães Pinto.

A posição dos governadores

     Neste ponto será útil mapear o posicionamento dos principais governadores envolvidos no processo conspiratório, de um lado e de outro.

     Miguel Arraes, em Pernambuco fazia o movimento das esquerdas, dando amplo apoio às Ligas Camponesas de Francisco Julião, um movimento extremista que objetivava a reforma agrária à força, criando situações de fato, com a invasão de propriedades produtivas, sobretudo engenhos, e criando situações de conflito armado, sob as vistas grossas, quando não, sob a proteção do Governador.

     Em Minas Gerais, Magalhães Pinto, mineiramente, dava uma no cravo e outra na ferradura. Conspirava contra o presidente da República, mas sem alarde, dando mesmo a entender que estava ao lado do governo central.

     Nesse propósito, chegou até a financiar, com dinheiro público, a realização, em Belo Horizonte, do 1º Congresso Nacional de Trabalhadores do Campo, arcando com as despesas de instalação, transporte e alojamento. Como não podia deixar de ser, a maior representação (cerca de 200 camponeses) foi a de Francisco Julião, que pedia a desapropriação sumária de todo latifúndio acima de 500 hectares. Diante de uma multidão calculada em 5 mil pessoas, foi transmitida uma gravação com a voz de Fidel Castro, dando apoio cubano à reforma agrária brasileira.

     Na Guanabara, reinava absoluto Carlos Lacerda, com mandato diferenciado dos demais, já que o Estado foi criado em 1961 e sua presença no governo deveria se estender até 1965.

     Magalhães e Lacerda conspiravam contra o governo, mas evitavam comunicar-se. Ambos eram candidatos virtuais à presidência da República e cada um deles, isoladamente, procurava fortalecer sua posição, enfraquecendo o adversário. Magalhães, recatado, levava a melhor; Lacerda, destemperado, expunha-se demais, mas, em compensação, fazia uso da máquina para esmagar movimentos pró-Jango, com medidas nem sempre em plena conformidade com a lei.

     Ademar, em São Paulo, era um meio termo entre os dois. Falava e agia com franqueza, mas medindo suas reações e, no interesse da causa, não teve dúvidas em aliar-se ao seu maior inimigo, Júlio Mesquita Filho, diretor do jornal O Estado de São Paulo.

     No Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti era uma incógnita, mas, estourando o movimento, em 31 de março, mudou a sede do governo para o interior, anunciando sua adesão aos militares anti-jango.

     Brizola, cunhado de João Goulart e um dos representantes mais importantes da esquerda, encerrara seu mandato como governador do Rio Grande do Sul, mas elegera-se deputado federal e mantinha sua ascendência política sobre o seu Estado e sobre uma boa parte do país. Era também um demolidor e, na esquerda, servia de contraponto à agressividade de Lacerda na Guanabara. Sem ser comunista, Brizola adotava a técnica de organização de células revolucionárias, que chamou de "grupos de onze". Esse era o número de componentes de cada célula e, no momento oportuno, pretendia ativar todas elas para detonar o governo central.

A ação das esquerdas

     Se as forças anti-Janguistas se articulavam para a derrubada do Governo, do outro lado, as forças pro-Jango se preparavam para uma mudança radical do regime, dando a João Goulart poderes absolutos para realizar as reformas que tinha em mente. Enquanto as primeiras, firmadas em líderes políticos e empresarios, mantendo o controle de comandos vitais nas Forças Armadas, tinha uma noção exata de seu poder, os janguistas se iludiam em sua força aparente, seduzidos pela idéia do sucesso e divorciados da realidade.

     Por todo o lado as organizações esquerdistas se organizavam para um golpe final às instituições. Organizações trabalhadoras e estudantis recrudesciam em sua ação, produzindo greves e movimentos populares de apoio e sustentação ao presidente da República.

     Se as associações de trabalhadores eram mais experientes e práticas, a UNE–União Nacional de Estudantes apresentava-se idealista e intelectualizada, estendendo sua ação junto às escolas e fazendo um trabalho de proselitismo que utilizava sobretudo o teatro, com a cooperação do CPC – Centro Popular de Cultura, onde se abrigavam os mais conhecidos artistas jovens de nosso país. Contavam-se, entre eles, Oduvaldo Viana Filho (Vianinha), Gianfrancesco Guarnieri, Cacá Diegues, Leon Hirzmann. Vera Gertel (mais tarde reporter de TV) e outros. E mais cantores e compositores, como Edu lobo, Carlos Lyra e Sérgio Ricardo O sociólogo Luís Werneck Vianna, reconhece o excesso de idealismo juvenil que lhes vedava os olhos à realidade que, sobretudo no Rio de Janeiro, lhes era adversa, com a polícia do governador Carlos Lacerda e o peso das forças bem articuladas da direita:

     "Nós tínhamos, particularmente os jovens, que haviam sido mobilizados pela política de esquerda daquela época, uma confiança muito grande nas lideranças. E as lideranças diziam que, ‘se a direita levantasse a cabeça, essa cabeça seria cortada’. Isso é textual. Foi uma frase que o Prestes [Luiz Carlos Prestes, secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro] lançou na ABI [Associação Brasileira de Imprensa] quinze dias ou um mês antes do golpe. Nós fomos para a UNE com um espírito de resistência (...) Fomos para a UNE como para mais uma jornada, onde as coisas aconteceriam e, no dia seguinte, tudo voltaria ao normal, como tantas outras crises que havíamos assistido no período."

     Oduvaldo Viana Filho foi uma das vítimas dessa imprudência. Preso pela polícia de Lacerda, "desapareceu" por alguns dias nas dependências do DOPS carioca, sendo ineficaz o "habeas-corpus", porque não era localizado em lugar algum. Foi preciso a interferência do general Nelson de Mello que, mesmo sem concordar com o posicionamento da UNE, agiu no sentido de localizar e libertar Vianinha.

     Heron Domingues, o célebre Reporter Esso, reproduziu na TV os acontecimentos: "Mocinho falador, você está preso – foi o que disseram a Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, preso na avenida Rio Branco, esquina da Araújo Porto Alegre." E, em entrevista à Última Hora, diz Vianinha: "Cuspiram-me no rosto e rasgaram minha roupa". E, mais tarde conta: "A ordem era total intimidação e a mais completa humilhação. Cheguei à conclusão de que, com aquela polícia, até mesmo um homem santo como D. Helder [D.Helder Câmara, Arcebispo do Rio] ou um retardado como o almirante Pena Boto [um dos conspiradores contra a posse de Juscelino em 1956] poderiam ser transformados em revolucionários."

     De um lado e de outro, os espíritos se armavam para uma luta sem fronteiras. Não havia uma voz pacificadora, capaz de serenar os ânimos e reencaminhar o país para o entendimento. Todos queriam o bem-estar da nação, cada um à sua maneira, usando a força como argumento.

A articulação da direita

      Se as esquerdas contavam com apoio ostensivo de Cuba, da União Soviética e da China, inclusive com a presença de agentes subversivos no Brasil, a direita, por sua vez, tinha uma cobertura de retaguarda dos Estados Unidos, através da "Operação Brother Sam", que garantia a interferência americana até o ponto em que fosse necessária para impedir a implantação de um regime comunista no Brasil.

     Os EUA já tinham Cuba bem próximo de si, o que era um problema mais do que suficiente, não lhes interessando, de maneira alguma o surgimento de outro núcleo justamente no cone sul, o que facilitaria a propagação revolucionária pelos países vizinhos. Não custa lembrar que o Brasil faz divisa com todos os países da América do Sul, com exceção de Equador e Chile.

     Na conspiração anti-Jango, o setor militar estava fortemente guarnecido. O general Costa e Silva entregou o comando do 4º Exército (Recife) ao general Castelo Branco e veio para o Rio de Janeiro. O próprio Castelo Branco, tempos depois, foi transferido também para o Rio de Janeiro, assumindo o comando do Estado Maior do Exército (EMEx). Na Marinha, havia o almirante Sílvio Heck, na Aeronáutica, o prestígio do brigadeiro Eduardo Gomes. Ao lado deles, o ex-Presidente, marechal Eurico Gaspar Dutra.

     No setor civil, a presença, em peso, da União Democrática Nacional, mais o apoio de populistas e integralistas, representados sobretudo pelo PSP de Ademar de Barros e, no Rio de Janeiro, o coração do movimento era governador Carlos Lacerda, com todo poder de fogo, tanto na imprensa como no governo do Estado da Guanabara.

     Se você imagina que a capital do Brasil era, de fato, Brasília, esqueça tudo isso. O novo Distrito Federal existia há apenas três anos e o centro do movimento político e militar militar permanecia no Rio de Janeiro. Alí se encontravam os principais ministérios, as repartições públicas, ali se realizavam os conchavos e até o presidente da República podia ser encontrado com mais facilidade no Palácio das Laranjeiras que no Palácio do Planalto.

     Além do que, constituindo-se no centro nervoso do país, qualquer manifestação popular, pró ou contra, realizada na cidade do Rio, ganhava rapidamente repercussão nacional, servindo de agente multiplicador de novas reações em outras partes do país.

     Brasília permanecia uma ilha, onde a força mais atuante era ainda o Congresso Nacional, preso alí por sólidas amarras, já que sede não podia ser itinerante. Mas as grandes decisões saiam mesmo do Rio de Janeiro e era ali que deveria eclodir o movimento revolucionário, programado inicialmente para meados de abril de 1964.

Os acontecimentos se precipitam

     O mês de março de 1964 marcou a radicalização das posições de um lado e de outro numa escalada impressionante que fazia prever uma substituição do embate de idéias pelo confronto armado direto.

     No dia 13, o presidente João Goulart promoveu o Comício das Reformas, em frente à estação da E.F.Central do Brasil, mas em área militar, onde manifestações públicas não são permitidas. Os mais modestos estimaram a presença de 150 mil pessoas, havendo quem garantisse haver na concentração mais de 250 mil pessoas.

     Na ocasião, assinou um ato determinando a desapropriação de todas as terras às margens de rodovias e açudes, mediante prévia e efetiva indenização. Ou era um ato demagógico, ou então contava com o rompimento institucional, por um golpe de estado, com o que os pagamentos seriam feitos em papéis de dívida pública, pagáveis em 15 ou 20 anos, tal como acontecera com as desapropriações em Cuba.

     E havia momentos de alucinação, como aquele em que um punhado de senhoras católicas se ajoelharam diante de um estúdio de TV em São Paulo, com seus terços entre as mãos, para impedir a entrada de Miguel Arrais, que deveria participar de um debate.

      Houve também movimentos mais organizados, como as Marchas da Família, com Deus e pela Liberdade, em São Paulo, Santos e, tardiamente, no Rio de Janeiro. Em São Paulo, num dia de semana, que não era feriado, os organizadores conseguiram colocar nas ruas 250 mil pessoas, às três horas da tarde. Fábricas fecharam suas portas e colocaram operários em caminhões e ônibus para levá-los às passeatas.

     No centro velho de São Paulo, que tem uma população ativa em torno de 2 milhões de pessoas, escritórios e bancos fecharam suas portas, colocando uma multidão nas ruas, sem condição de retornar a suas casas. Uns poucos por convicção, a maioria por curiosidade, acabou se infliltrando na passeata, que ganhou, assim, um reforço considerável de manifestantes.

     Mas essas manifestações eram mais um trabalho de midia. Na verdade, os acontecimentos que mais pesaram no desenvolvimento do processo foram a revolta dos marinheiros e a reunião dos sargentos no Automóvel Clube fatos que saltavam à vista e não podiam ser ignorados por ninguém.

     No dia 27 de março, marinheiros liderados por um agente duplo, que ficou sendo conhecido como "cabo" Anselmo, e com a evidente cumplicidade do almirante Aragão, recusaram-se a reassumir seus postos de trabalho. Presos em um quartel do Exército, foram inexplicavelmente liberados, horas depois, e sairam em ruidosa passeada pela cidade do Rio de Janeiro.

     Três dias após, em 30 de março, o próprio presidente da República, despachando há vários dias do Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, consentiu em comparecer a uma reunião de sargentos realizada no Automóvel Clube e lá discursou, ao lado do "cabo" Anselmo e do Almirante Aragão.

     Estava quebrada a cadeia de comando, indispensável para a manutenção da ordem e da disciplina militar. Era o próprio chefe supremo das Forças Armadas que se juntava a praças insubmissos, dando-lhes apoio e desmantelando toda a hierarquia das Forças Armadas. Na quebra da autoridade, só restava a opção da força e seu emprego acabaria acontecendo horas depois.

Voltando a Minas Gerais

     Deixemos de lado, por um momento, os cabos e soldados rebelados e voltemos a Minas Gerais, onde Mourão Filho encontrava dificuldades em articular seu plano de ação revolucionária a que deu o nome de "Operação Popeye", talvez em lembrança ao cachimbo que sempre levava consigo.

     Em Juiz de Fora, nem tudo saiu como esperava, pois seus comandados imediatos, em que pese o respeito à sua autoridade, recusavam-se a participar de qualquer movimento conspiratório, assegurando que só pegariam em armas se houvesse, em efetivo, um golpe do presidente da República contra as instituições. Antes disso, não.

     Nessa situação, Mourão passou a catequizar a jovem oficialidade, contando com seu comando para, no momento oportuno, tirar os soldados dos quartéis para marchar sobre o Rio de Janeiro. Nesse propósito, todavia, era contestado veementemente pelo general Luís Carlos Guedes, comandante da Divisão de Infantaria sediada em Belo Horizonte, e pelo governador Magalhães Pinto, que não acreditavam em uma revolução desse porte feita com "meninos recrutas" comandados por jovens oficiais.

     Mas, no momento exato, conseguiu o apoio do marechal Odilio Denys, que se deslocou para Juiz de Fora, a fim de dar-lhe apoio de retaguarda. O motivo é simples: Na ação revolucionária, Mourão, general de Divisão (3 estrelas), não seria acatado pelos generais de Exército (4 estrelas). Sendo Denys um marechal, o comando geral ficaria em suas mãos, enquanto Mourão, supostamente sob suas ordens, colocaria as tropas a caminho do Rio de Janeiro.

     Mas o Manifesto preparado por Magalhães Pinto, chefe civil da revolução era uma mistura de água com açucar. O governador deixava a porta aberta para um recuo e, nessas circunstâncias, toda responsabilidade caia sobre o comando militar!

     O general Mourão lamentou o tempo perdido e estabeleceu novo cronograma, prevendo a saida das tropas em 31 de março às 5 horas da madrugada, com ou sem manifesto, com ou sem o Governador. Não havia mais tempo ou condições para recuar.

Tropas na rua!

     Juíz de Fora, 31 de março, 5 horas da manhã. O general Olímpio Mourão Filho desencadeia a "Operação Popeye" promovendo o levante das tropas da 4ª Região Militar e da 4ª Divisão de Infantaria, apoiado pelo entusiasmo da jovem oficialidade e dos "meninos recrutas", submetidos que foram a um mês de rigoroso e mortal treinamento. É o momento de provar se aqueles "meninos" com seu entusiasmo teriam condições de superar com sua audácia as limitações de sua inexperiência. À frente das tropas seguia o general Murici.

     A notícia estourou no Rio de Janeiro e em São Paulo como uma bomba. Ninguém no alto comando queria acreditar. Mas, ao ser confirmada sua veracidade, o general Castelo Branco teria dito: "Agora, ou damos apoio ao Mourão, ou ele estará perdido!"

     Em São Paulo, o comandante do 2º Exército, general Amaury Kruel aderiu ao movimento e enviou tropas ao encontro de Mourão. Não foi tão espontâneo quanto possa parecer. Ficou até o último minuto em cima do muro e acabou saltando sobre o cavalo que passou já encilhado, entusiasmado mais pelo apoio que vinha do Rio de Janeiro, do que pela aventura mineira.

     Do Rio de Janeiro partem, também, tropas do Regimento Sampaio (1ª Regimento de Infantaria), comandadas pelo coronel Raimundo Ferreira de Sousa, supostamente para dar combate aos rebeldes. O coronel Raimundo, entretanto, após um contato telefônico com Juíz de Fora, falando diretamente com o marechal Odílio Denis, adere ao movimento. Juntando seus soldados aos de São Paulo e Minas, passa a integrar as forças rebeldes que entram vitoriosamente na cidade do Rio de Janeiro.

     O presidente João Goulart viaja para Brasília, daí para Porto Alegre e, por fim, se exila no Uruguai. O Congresso Nacional, declara vago o cargo e empossa como presidente da República, dentro da linha de sucessão, o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli. Um Presidente de fantasia, já que todas as decisões políticas estavam sendo tomadas pelo novo comando militar, no Rio de Janeiro.

     Com efeito, ao chegar ao Rio de Janeiro, comandando as tropas revolucionárias, o general Mourão encontra um esquema previamente montado que torna inútil a sua presença ali. Costa e Silva se fizera ministro da Guerra; Castelo Branco era o nome indicado para assumir a presidência da República, cumpridas as formalidades; o general Ururai assumira o comando do 1º Exército; o general Taurino, a 1ª Região Militar. Os comandantes do movimento no Rio de Janeiro tomavam posse de seus cargos antes mesmo que o Congresso declarasse a vacância do cargo de Presidente, e Mazzili tivesse tempo de nomear seu ministério. Isso vai melhor contado no próximo capítulo.

"Tio Sam" na batucada

     Para finalizar, cabe estabelecer a participação dos Estados Unidos da América, durante o período de conspiração e no momento em que se verificou a eclosão do movimento militar de 1964. Ela aconteceu e recebeu o nome de Operação Brother Sam, representando um apoio importante para que o movimento anti-Jango se desenvolvesse e chegasse a bom termo.

     No correr dos tempos, os Estados Unidos desenvolveram um estranho conceito de domínio que ficou conhecido como Doutrina do Destino Manifesto. Segundo ele, em linhas gerais, Deus entregou aos americanos o dever de zelar pelos destinos do mundo, cabendo-lhes interferir, quando necessário, para garantir a estabilidade das nações.

     Esse conceito se aplicou particularmente ao continente americano, sobretudo a partir do século 19, com a doutrina Monroe (A América para os americanos), reavivada, de tempos em tempos, com nomes e propósitos diversos, mas sempre dentro do mesmo princípio. Foi o panamericanismo, a política da boa vizinhança, a Aliança para o Progresso, etc.

     Por outro lado lado, a partir da 2ª Guerra Mundial, os militares brasileiros se afastaram da escola francesa, que treinava nossos soldados, e se aproximaram dos Estados Unidos, junto aos quais deveríamos lutar nos campos da Itália. Com isso, nosso conceito de segurança militar foi adaptado também às doutrinas do National War College, segundo as quais o verdadeiro perigo pode não vir de fora mas se achar instalado dentro do próprio país; não são necessáriamente as potências militares estrangeiras, mas podem estar enraizados na própria sociedade civil. Em resumo o verdadeiro perigo à nação brasileira, pode ser o próprio cidadão brasileiro, que passa a ser tratado como inimigo em potencial.

     Foi dentro desse espírito que os conspiradores anti-Jango, desde o princípio, aproximaram-se dos Estados Unidos, procurando obter destes a garantia de apoio na luta contra o "perigo interno".

     Nesse processo, exerceram papel importante o embaixador dos EUA no Brasil entre 1961 e 1966, professor Lincoln Gordon, e seu assessor, o coronel Vernon Walters. Este último tinha uma proximidade maior com o Brasil, pois, na Segunda Guerra, ainda major, atuou como interprete entre os comandos do 5º Exército e a Força Expedicionária Brasileira, trabalhando ao lado do tenente-coronel Humberto de Alencar Castelo Branco e em permanente contato com o nosso comando militar.

     Como falava fluentemente o português e tinha um grande relacionamento com os setores civil e militar, Valters era um contato valioso entre a embaixada americana e os conspiradores, levando a vantagem de poder circular com maior liberdade, sem chamar tanto à atenção, o que não aconteceria se as conversações de dessem diretamente com o embaixador.

     Foi a partir desses contatos, transmitidos fielmente por Lincoln Gordon ao Secretário de Estado americano, Dean Rusk, que surgiu a idéia de se montar a Operação Brother Sam, pela qual os Estados Unidos se comprometiam a dar toda cobertura de retaguarda para evitar a comunização do país.

     Não se conhece toda extensão do acordo. Oficialmente, a participação dos Estados Unidos se deu apenas com o envio de uma força-tarefa às águas do Atlântico Sul sob o pretexto de garantir a retirada dos 40 mil cidadãos americanos residentes no Brasil. A chegada dessa força-tarefa, ainda em águas internacionais, ocorreu em 28 de março, um Sábado de Alelúia, quando ainda se pensava que a revolução só iria eclodir na segunda quinzena de abril.

     Como os acontecimentos foram precipitados pela ação do general Mourão Filho, liquidando o assunto em dois dias, não é possível avaliar até que ponto os Estados Unidos estariam dispostos a intervir para garantir o sucesso do movimento, se este se prolongasse por mais tempo.

TRECHOS 
Folha de S. Paulo, 6 de maio de 2001

Aqui as alegações estão baseadas principalmente na força-tarefa naval, com nome-código Brother Sam, consistindo de um porta-aviões e destróiers de escolta, que partiram do Caribe rumo ao Brasil em 31 de março de 1964. Sua existência tornou-se publicamente conhecida quando telegramas pertinentes constantes na biblioteca presidencial de Johnson foram liberados para o público no final da década de 70 e com a publicação da monografia de doutoramento de Phyllis Parker, U.S. Policy Prior to the Coup of 1964 (Política dos Estados Unidos Antes do Golpe de 1964).'

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'Nenhum brasileiro, seja ele militar ou civil, estava a par da formação dessa força-tarefa na época. Foi organizada segundo minha recomendação para responder à contingência de que uma crise de regime poderia evoluir para uma situação de guerra civil, com as Forças Armadas, incluindo milícias estaduais, divididas geograficamente entre elementos pró e contra Goulart.

Em 1964, a maioria dos governadores de Estado poderiam ser classificados em partidos pró e contra Goulart, e eles freqüentemente tinham grande influência junto aos comandantes militares e guarnições nos seus Estados. Sei, pela história, que uma situação de quase guerra civil ocorreu na "revolução constitucionalista" de São Paulo de 1932 contra Vargas. E, mais recentemente, um confronto direto entre unidades do Exército pareceu uma possibilidade real depois do ultimato militar contra a volta de Goulart ao Brasil, em agosto de 1961.'

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'Felizmente, a possibilidade de uma guerra civil não se concretizou. A força-tarefa não estava equipada para uma intervenção militar e ainda tinha que navegar dez dias até chegar ao Brasil quando Goulart abandonou a presidência. A despeito do relato fartamente documentado de Parker sobre os eventos, publicado há mais de 20 anos, e da ampla publicação e tradução de mensagens entre Washington e o Rio liberadas para o público, alguns elementos da imprensa brasileira e da opinião pública parecem não estar dispostos a reconhecer que a derrubada de Goulart foi realizada pelos militares brasileiros sem a assistência ou aconselhamento dos Estados Unidos.'

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'Agora, com a liberação e divulgação para o público da Fita nº WH6403,19 da Biblioteca LBJ (Lyndon B. Johnson, disponível por US$ 5,00), torna-se evidente que o telefonema de Johnson para Reedy não foi inspirado em um relatório da CIA, mas sim por um telefonema de Rusk, feito imediatamente após a conversa de Rusk comigo. No telefonema dele ao presidente Johnson, Rusk disse: "A crise está chegando ao auge dentro de um ou dois dias, talvez até mesmo esta noite. Está se formando uma bola de neve de resistência a Goulart e, conseqüentemente, a coisa pode rebentar a qualquer momento. As forças armadas, os governadores -- particularmente os Estados populosos da costa Leste -- parecem estar construindo uma resistência de verdade lá. "Não há referência de conhecimento de bastidores de um movimento militar no dia seguinte".'

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'Não houve de fato nenhum planejamento conjunto com os golpistas das Forças Armadas brasileiras. Eles nada sabiam sobre a força-tarefa do Brother Sam. Foi um plano de emergência, desconhecido dos brasileiros, baseado em uma hipotética guerra civil que nunca chegou perto de se concretizar. O fato de termos recebido de bom grado a derrubada de Goulart é bem-conhecido. Mas não houve nenhuma participação americana na deposição de Goulart pelas forças militares. Esses foram os fatos que me permitiram testemunhar perante o Senado de que o golpe foi 100% e não 99,44% brasileiro.'

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