1964, E O ELO PERDIDO...

Documentos atestam participação dos EUA no golpe militar 64, enquanto Carlos Costa, do FBI, confirma entrevista na Procuradoria e na PF.

Por Bob Fernandes

Trinta e um de março de 2004. Recordações do golpe militar de 40 anos passados. Dos Estados Unidos, a ONG National Security Archives traz à luz documentos sobre a articulação do governo norte-americano para derrubar o presidente João Goulart. Ordenava o então presidente dos EUA, Lyndon Johnson, em telefonema ao subsecretário de Estado, George Ball, no dia 30 de março de 1964:

— Acho que devemos dar cada passo que pudermos, estar preparados para fazer tudo que precisarmos fazer (...) Não dá para agüentar esse aí (Jango). Eu iria em frente e arriscaria um pouco.

Três dias antes, Lincoln Gordon, embaixador dos EUA no Brasil, recomendava a altos oficiais dos serviços secretos, inclusive ao diretor da CIA, John McCone, e ao secretário de Defesa e de Estado, Robert McNamara:

— (...) que sejam tomadas medidas tão rápido quanto possível para preparar uma entrega clandestina de armas de origem não americana, para os apoiadores de Castello Branco em São Paulo assim que as necessidades forem conhecidas e os arranjos estiverem acertados. O melhor meio de entrega agora parece ser um submarino sem identificação, descarregado à noite em pontos isolados do litoral de São Paulo, ao sul de Santos, provavelmente perto de Iguape ou Cananéia. Isso deve ser acompanhado de suprimentos de combustíveis (...) também evitando identificação do governo dos EUA para evitar o estouro de hostilidades ativas. Essas ações devem iniciar imediatamente.

Dida Sampaio/AE
O senador Suplicy
chama ministro, PF e Abin para depoimento secreto
Trinta e um de março de 2004. Quarenta anos depois do golpe militar que instaurou a longa ditadura de 21 anos no Brasil, um homem oriundo de uma das mais poderosas agências policiais do Estado norte-americano está em Brasília, numa sala da Procuradoria da República. Ali, diante do procurador Luiz Francisco Fernandes de Souza, o homem dos Estados Unidos assina o depoimento prestado na véspera.

Ele, o depoente, é Carlos Alberto Costa, que de 1999 ao fim de 2003 chefiou o FBI no Brasil. Costa que, duas semanas antes, em devastadora entrevista publicada por CartaCapital, revelara a extensão e a profundidade da presença de agentes policiais e dos Serviços Secretos dos EUA junto a instituições policiais e de Inteligência em território brasileiro.

Carlos Costa, 49 anos, 22 deles dedicados ao FBI, ex-chefe de Seção de Contra-Espionagem Industrial Internacional na sede, em Washington, chega e sai do prédio do Ministério Público sem que um único repórter se apresente e formule perguntas.

Da mesma forma, sem ter de responder a questão alguma e sem um único microfone ou gravador à sua frente, o ex-chefe do FBI compareceu no dia seguinte ao edifício sede da Polícia Federal, em Brasília, onde depôs.

Em ambos os depoimentos, no aniversário do golpe militar que, comprova-se agora, contou com decisiva interferência dos Estados Unidos, Carlos Costa atestou, primeiro, ao procurador:

— Confirmo o inteiro teor da entrevista publicada (...) não há fantasias e sim realidades na entrevista (...) embasada nos anos de experiência e vivência profissional que o depoente tem.

À Polícia Federal, entregou cópia do depoimento dado ao MP e afirmou:

— ... Com relação à matéria publicada na revista CartaCapital , entende haver fornecido informações de que dispunha decorrentes da sua experiência...

A submissão de instituições policiais e de Inteligência do Brasil às “doações” anuais de Serviços norte-americanos, tais como CIA, DEA (drogas), US Customs (alfândega), NAS (Narcóticos, Departamento de Estado) e assemelhados, é uma das questões centrais da longa entrevista do ex-chefe do FBI. Mas, em suas próprias palavras, policiais e agentes dos Serviços estão aqui para “influenciar o anfitrião e fazer valer os interesses dos Estados Unidos”.

Em outras palavras, mais de meia centena de agentes e policiais dos Estados Unidos, do FBI, CIA, DEA, NAS, US Customs e quejandos, estão no Brasil para “espionar”.

CartaCapital, em sua edição passada, publicou uma lista de 20 destes senhores que, abrigados sob o manto diplomático, estão lotados na embaixada dos EUA em Brasília. Fora os espalhados País afora.

Resumo: enquanto o País rememora os 40 anos do golpe militar e a presença norte-americana em sua construção, o homem que comandou o FBI nestas plagas nos últimos quatro anos dá detalhes e pormenores, assombrosos, da presença consentida dos mesmos Serviços no Brasil deste 2004.

Em que pese um certo esforço para fazer de conta que não se percebeu o por todos percebido, o ato de Carlos Costa segue a ter conseqüências.

No Senado, Eduardo Suplicy (PT-SP), presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, convidou para depoimento em sessão secreta, no próximo dia 14, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, o diretor da Polícia Federal, Paulo Lacerda, e o ministro-chefe do Gabinete Institucional, e portanto da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), general Jorge Armando Felix.

Na Câmara dos Deputados, já são três os convites para autoridades e para que Carlos Costa forneça as informações que puder sem ferir o código de confidencialidade a que está obrigado pelo FBI. Dentre estes pedidos, um dos deputados petistas Maninha (DF) e Doutor Rosinha (PR).

Ed Ferreira/AE
Luiz Francisco.
No dia 31 de março...
Ainda na Câmara dos Deputados, a deputada do PSDB Rose de Freitas (ES) protocolou um pedido de CPI para apurar a presença dos serviços secretos no Brasil e a extensão dessa atuação.

Ponto nevrálgico na entrevista de Carlos Costa a CartaCapital, depois confirmado nos depoimentos ao Ministério Público e à PF, a insuficiência de meios e verbas que levam a Polícia Federal, já há muitos anos, a uma situação de pedinte, de subordinação a “doações” de sete, nove, dez milhões de dólares/ano, ou mais, feitas por instituições dos EUA: DEA, CIA, NAS, US Costums, etc., etc.

Verifique-se então, para que não restem dúvidas, qual a real situação orçamentário-financeira da Polícia Federal. Para 2003, no item Manutenção, o orçamento previa R$ 135 milhões. Dinheiro que, em maio, já havia sido gasto.

A verba suplementar de R$ 115 milhões chegou no fim de 2003. Foi insuficiente. A polícia do Estado brasileiro virou o ano devendo R$ 20 milhões em contas de telefone, água, luz, combustível, alimentação de presos, etc., etc.

Cenário para este 2004. Orçamento ideal: R$ 850 milhões, o que cobriria os gastos com as duas rubricas, Manutenção e Investimentos. Orçamento aprovado: R$ 380 milhões. Déficit de R$ 470 milhões.

Desçamos ao detalhe. Orçamento para Manutenção aprovado para 2004: R$ 170 milhões. Tanto, assim como em 2003, será gasto até maio. Isso se tudo tivesse sido repassado, mas não o foi, pois 32% estão retidos pelo célebre “contingenciamento”. Pedido de verba suplementar já encaminhado: mais R$ 160 milhões.
A resposta aguarda o resultado das contas na busca do superávit fiscal. Em última análise, o grau de independência, ou dependência, da Polícia do Brasil segue nas mãos de Anne Krueger, aquela senhora do FMI.

Se a senhora Krueger e ou os seus por aqui se decidirem pelos cortes – como se tem dado ao menos desde todo o período Fernando Henrique Cardoso –, polícias e órgãos de Inteligência do Brasil continuarão a depender dos R$ 30 milhões, pouco mais, pouco menos, das migalhas doadas pelos serviços secretos e policiais dos Estados Unidos em troca de uma presença cada vez mais profunda e escancarada. E perigosa.
Ah, sim. E seguem as rememorações do 31 de março de 1964.


O GOLPE TELEGRAFADO, PASSO A PASSO
Correspondência secreta mantida nos últimos dias do governo Jango revela o grau de engajamento americano. Por Marcelo Soares

O teor dos documentos que revelam a movimentação diplomática entre o Brasil e Estados Unidos – recém-liberados para o público – mostram a impressionante velocidade da articulação dias antes do golpe, mesmo num tempo em que os interurbanos eram dificílimos. A pressa se devia ao fato de Jango ter anunciado a implantação das reformas de base até 24 de agosto, quando o suicídio de Getúlio Vargas completaria 10 anos.

Em telegrama de 27 de março aos departamentos de Estado e Defesa, o embaixador americano Lincoln Gordon afirma que, embora desconfiando da intenção de João Goulart de dar um golpe com o apoio do Partido Comunista, ainda havia chance de o presidente permanecer até a eleição do substituto. Gordon manifesta apoio ao grupo do general Humberto Castello Branco, que considerava respeitador das leis.

“Diferente dos vários grupos golpistas anteriores anti-Goulart que nos procuraram nos últimos dois anos e meio, o movimento de Castello Branco mostra ter amplo apoio e liderança competente. Se formos colocar nossa influência para reverter um grande desastre aqui – que poderia tornar o Brasil a China dos anos 60 – é aqui que eu e meus assessores seniores acreditamos que o apoio deve ser posto. (Os secretários Rusk e Mann devem notar que Alberto Byington está trabalhando nesse grupo.) Manteremos essa visão mesmo que Castello Branco seja dispensado como chefe de pessoal do Exército.”

Ele também informa que os EUA estavam dando apoio clandestino a passeatas:

“Estamos tomando medidas complementares com os recursos disponíveis para ajudar a reforçar as forças de resistência. Isso inclui apoio clandestino a passeatas pró-democráticas (a próxima ocorre em 2 de abril no Rio, e outras estão sendo programadas), boatos discretos de que os EUA estão profundamente preocupados e encorajamento de sentimentos democráticos e anticomunistas no Congresso, nas Forças Armadas e grupos amigáveis.”

Segundo ele, estariam com Jango apenas 15% a 20% do Congresso e da população, mas isso seria suficiente para evitar impeachment. O embaixador manifestava simpatia ao envio de armas “de origem não americana” (conforme reproduzido em trecho abaixo) e combustível para os conspiradores, e recomendava aos EUA que dessem pronunciamento sobre sua preocupação com os rumos do Brasil. Acrescentando:

“Não podemos arcar com nenhuma perda de tempo ao nos prepararmos para tais ações. O risco de um Brasil comunista parece inaceitável, implicando custos potencialmente maiores em dinheiro e vidas.”

Dois dias depois, ele afirma que a situação se agravara e que a ação americana era urgente: “Dada a predileção brasileira pelas causas vitoriosas, o sucesso inicial pode ser a chave para o lado onde as várias forças indecisas irão aterrissar”, escreveu. “O risco de atribuição futura (do golpe) a operações clandestinas do nosso governo parece pequeno em relação aos efeitos políticos da operação se implementada com habilidade, tendo em mente que levamos regularmente a culpa por tantas coisas que não fazemos”, avaliava.

O Departamento de Estado respondeu no dia 30. Segundo o telegrama, as armas seriam enviadas em petroleiros que partiriam de Aruba e que chegariam pelo Porto de Santos. Fazer exercícios militares na costa brasileira foi visto como algo arriscado. “Enviar combustíveis com petroleiros da Marinha americana e despachar aeronaves exigiria o desenvolvimento da situação político-militar até o ponto em que qualquer grupo com razoáveis aspirações à legitimidade poderia exigir formalmente o reconhecimento e auxílio nosso e se possível de outras repúblicas americanas. Já o despacho de petroleiros de Aruba e da força naval não nos envolve na situação brasileira e será considerado um exercício naval normal”, diz o documento.

No dia 31, o presidente Lyndon Johnson, em conversa telefônica com o subsecretário de Estado George Ball diz que é hora de “fazer tudo o que é preciso”.

Esperava-se que o golpe tivesse conseqüências sangrentas, mas não foi bem assim. Gordon recebe no mesmo dia um telegrama sobre o envio de um petroleiro contendo combustíveis e armamentos. Chegaria em 11 de abril, no Porto de Santos, caso Gordon não informasse no dia seguinte, em teleconferência com a Casa Branca, que o golpe já tivera sucesso e que as armas não eram mais necessárias.

“O secretário Rusk disse que o embaixador Gordon não defendeu o apoio dos EUA desta vez. Só os paulistas haviam solicitado esse apoio, e ainda sem definição. O embaixador Gordon, com quem o secretário concordou, acredita que seria errado, a esta altura, dar a Goulart uma bandeira antiianque”, diz a ata da teleconferência de 1º de abril.

A imprensa americana, porém, já comentava a partida de navios para o Brasil. A ordem, então, foi negar os boatos. O último documento, de 2 de abril, informa sobre a partida do presidente deposto, de Porto Alegre para Montevidéu, à uma da tarde. Estava consumado o golpe.

Desde a segunda metade dos anos 90, documentos liberados pelos EUA – muitos deles com trechos censurados por mais alguns anos – ajudaram a avançar, a conta-gotas, as investigações sobre as responsabilidades dos EUA nas ditaduras militares da América do Sul. O Chile e a Argentina já solicitaram a liberação de documentos sobre a sua história. O Brasil nunca encaminhou solicitação.
ARTIGO DA REVISTA CARTA CAPITAL grande divulgadora de verdades.

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