Entrevista da Revista Veja de 01/05/02
Com José Maurício Bustani

José Maurício Bustani briga com os EUA

Brasileiro demitido de órgão da ONU
fala dos golpes dos americanos para
puxar-lhe o tapete


Eduardo Salgado
AFP

"Se tivesse saído quieto quando os americanos mandaram, eu poderia estar em um belo posto. Mas não seria uma pessoa feliz"

O diplomata brasileiro José Maurício Bustani foi destituído na semana passada do cargo de diretor-geral da Organização para a Proibição das Armas Químicas (Opaq), órgão da ONU com sede em Haia, na Holanda. Bustani se licenciou do Itamaraty para ser eleito o primeiro diretor da Opaq, em 1997, e reeleito por unanimidade em 2000. A partir de meados de 2001, começou a receber ordens de membros do governo de George W. Bush e, como se negou a cumpri-las, sua vida se tornou um inferno. Na reunião do conselho executivo da Opaq em março, os Estados Unidos propuseram uma moção de não-confiança para a retirada do brasileiro. Como não conseguiram os votos necessários, apoiaram a idéia de uma conferência especial para tratar do assunto. Na semana passada, Bustani acabou saindo com 48 votos a favor de sua demissão, 7 contra e 43 abstenções. Apesar da destituição, o diplomata, casado e pai de três filhos adultos, não se considera derrotado. Depois de cinco anos sem férias, quer descansar antes de se apresentar ao Itamaraty. Bustani falou a VEJA de sua casa em Haia.

Veja – Por que o senhor caiu?
Bustani – Fui um obstáculo para os americanos porque agi de maneira independente, fazendo com que as regras valessem para todos. Dos Estados Unidos ao Paraguai. Em tese, os americanos aceitam que as regras valem para todos, mas talvez não queiram que seja assim na prática. Alguns elementos do governo americano tiveram novas percepções em relação ao que devem fazer as organizações multilaterais, aquelas que reúnem vários países. A nova administração dos Estados Unidos não admite que um diretor-geral tenha independência de ação.

Veja – Qual é a principal atividade da Opaq?
Bustani – Não há mais fábricas produzindo armas químicas nos países membros da Opaq. Nós destruímos todas. Fazemos inspeções onde existem armas armazenadas, nos locais em que essas armas estão sendo destruídas e nas indústrias químicas. Os Estados Unidos, a Rússia, a Índia e a Coréia do Sul, os países que possuem armas químicas, comprometeram-se a acabar com seus arsenais e estão fazendo isso sob a supervisão da Opaq. Todos os países membros da organização que têm indústrias químicas mais desenvolvidas são inspecionados para que a comunidade internacional tenha certeza de que não há armas novas sendo produzidas.

Veja – Quando o senhor sentiu que os americanos queriam sua cabeça?
Bustani – Tive problemas com os americanos desde o começo. Eles não aceitam facilmente que os funcionários da Opaq façam inspeções nos Estados Unidos. Em várias oportunidades, os inspetores tiveram dificuldades de entrar em partes das fábricas americanas. Nessas oportunidades, não podiam assegurar que a finalidade da planta era pacífica. Não pude fechar os olhos a esses casos, como os americanos gostariam. Deixei os casos abertos, insistindo em voltar às fábricas, entrar em todas as partes e poder garantir que não havia nenhuma coisa errada. Isso os irritou. Acho que os americanos não têm medo de que os inspetores roubem segredos industriais, como alguns dizem. É apenas orgulho. Não querem aceitar regras que valem para todos os países. A partir de meados do ano passado, a situação começou a ficar muito difícil, porque houve mudança na administração americana. John Bolton, um sujeito da época de Ronald Reagan e um dos mais tradicionais da linha dura, foi indicado como subsecretário de Estado. Ao tomar posse, esse senhor decidiu interferir diretamente em minha administração.

Veja – Como assim?
Bustani – Bolton me telefonou e me deu ordens. Queria inspeções mais camaradas e que eu colocasse americanos em determinadas posições, para que eles pudessem controlar mais a organização. Em toda a minha administração sofri pressões de outros países, como a Alemanha, e resisti. É importante dizer que nem todo mundo é igual em Washington. É preciso fazer o equilíbrio entre os de linha dura e os sujeitos mais inteligentes, como o secretário de Estado, Colin Powell, que são as pessoas mais sensatas. Há um ano, Powell, a quem admiro muito, mandou-me uma carta me agradecendo pelo meu trabalho e me elogiando.

Veja – O senhor encontrou Bolton pessoalmente?
Bustani – Sim. Em março, Bolton veio a Haia e disse: "Washington quer que o senhor saia da Opaq amanhã, antes da reunião do conselho, e que se retire de Haia imediatamente". Perguntei as razões, e a resposta foi: "Seu estilo de administração". Pedi que fosse mais preciso, e ele respondeu que não tinha nada a explicar.

Veja – Seu telefone foi grampeado?
Bustani – Desde janeiro, tenho grande dificuldade de falar ao telefone. Todas as minhas ligações costumam ser interrompidas. Há barulhos ou a ligação cai. Antes, não era assim.

Veja – O senhor teve problemas quando deslocou de função um funcionário americano?
Bustani – Um funcionário americano, muito próximo do subsecretário Bolton, estava no posto responsável pelo orçamento, mas não tinha a menor experiência nessa área. Era um historiador. Em minha opinião, o orçamento deveria ser feito pela divisão de orçamento. Em junho do ano passado, pedi que esse americano exercesse outra função num cargo de prestígio igual. Isso causou certo tipo de desconforto.

Veja – Os americanos têm a intenção de atacar o Iraque sob a alegação de que Saddam Hussein se nega a abrir o país para inspeções em busca de armas de destruição em massa. O que isso tem a ver com sua destituição?
Bustani – Parte de minha função era atrair novos países para dentro da organização, algo que fiz com enorme sucesso. O número de Estados membros saltou de 87 para 145 países, entre eles o Irã e o Sudão. Há cinco anos, tento convencer o Iraque a entrar para a Opaq, mas não consegui convencer seus representantes. Não havia sinal algum de que estivessem prestes a mudar de idéia. Caso o Iraque entrasse na Opaq, teria de aceitar as inspeções. Talvez haja interesses contrários a isso.

Veja – Pesam contra o senhor acusações graves, como má administração, iniciativas mal analisadas e desmoralização de sua equipe.
Bustani – Os Estados Unidos lançaram uma campanha extremamente eficaz. São responsáveis por 22% do orçamento, mas não pagam em dia. Até agora, só pagaram metade do que deveriam neste ano. O Japão, o segundo contribuinte, com 19%, não pagou nada ainda. A Alemanha só pagou a metade. Tive de fazer das tripas coração para conseguir manter o número de inspeções desejado. No ano passado, fizemos apenas 75% das inspeções que estavam programadas, porque os americanos atrasaram o pagamento. Os atrasos prejudicaram o trabalho, e agora eles decidiram colocar a culpa em mim. Sobre a administração, tivemos auditorias externas, que não encontraram nenhuma irregularidade. Na última reunião, não houve acusação alguma contra mim. Apenas decidiram que eu deveria ser demitido imediatamente. Isso foi um linchamento sumário.

Veja – Por quê?
Bustani – As regras das organizações multilaterais não permitem a demissão do diretor-geral. É assim porque é preciso ter liberdade para trabalhar, independência de ação. Não se pode se sentir ameaçado, submetido à apreciação dos Estados membros da organização, por mais importantes que sejam. O momento de demonstrar desagrado com um diretor-geral ou secretário-geral é na eleição. O Boutros Boutros-Ghali não conseguiu reeleger-se como secretário-geral da ONU, em 1996, porque houve objeção. Mas no meio de um mandato não se pode fazer isso.

Veja – Por que até os europeus ficaram contra o senhor?
Bustani – Os americanos ameaçaram os europeus de se retirar da organização, o que a inviabilizaria. Para os europeus, isso seria extremamente traumático, tendo em vista a posição isolacionista dos americanos no Protocolo de Kioto, aquele do meio ambiente, no tratado das armas biológicas, no Tribunal Penal Internacional e até na questão das minas terrestres. A França foi o único país europeu mais sensível e se absteve de votar contra mim.

Veja – Por que o senhor decidiu ficar até ser expulso?
Bustani – Primeiro, porque não havia feito nada de errado. Não pretendia sair porque os Estados Unidos e outros dois ou três países estavam me mandando. Esperei para que os países que me elegeram por aclamação decidissem pela minha saída. Quando os americanos lançam uma campanha dessa natureza, sabe-se que as dificuldades serão bastante grandes. Principalmente quando é um indivíduo contra uma força dessas. Mas isso nunca me assustou. O que me ajudou foi a certeza de que estava com a consciência limpa. Se tivesse saído quieto quando os americanos mandaram, eu poderia estar em um belo posto em outro lugar. Mas não seria uma pessoa feliz. O mais valioso são os princípios que defendi.

Veja – Quais são as vantagens das instituições multilaterais, as formadas por várias nações?
Bustani – É a forma que encontramos de democratizar as relações entre os países. Cada país tem um voto e uma voz. O pequeno e o grande são ouvidos, e existe o compromisso de chegar a conclusões que são as melhores possíveis para a vida em comum.

Veja – Qual é a conseqüência de sua destituição para a diplomacia?
Bustani – Abre um precedente gigantesco. A partir de agora, qualquer diretor de organização internacional, incluindo o secretário-geral da ONU, pode ser retirado sumariamente, como eu fui. Não há base jurídica alguma para o que fizeram. Não tinha apego ao cargo, e a minha preocupação era o precedente. Essa decisão representa um perigo muito grande para o multilateralismo.

Veja – Sua resistência não acabou prejudicando a relação do Brasil com os Estados Unidos?
Bustani – Representantes brasileiros e americanos declararam que esse assunto jamais afetaria as relações entre os dois países. Imagino que não tenha afetado mesmo. Eu fui diretor da Opaq, não o Brasil. Estava licenciado do Itamaraty. Trabalhava como funcionário internacional e não recebia ordens de ninguém, nem do Brasil.

Veja – Os Estados Unidos têm um terço da economia mundial e um poder militar sem paralelo na história. Se o senhor fosse um diplomata americano, também não seria prepotente?
Bustani – Infelizmente, esse é um dos raciocínios que prevalecem em Washington. O mundo não pode ser feito dessa maneira. Por mais poderoso que um país seja, não pode viver em isolamento. A comunidade internacional se relaciona por meio da comunicação e da cooperação. É impossível impor a vontade de um país ao resto do mundo. Os grandes impérios acabaram se destruindo por causa disso.

Veja – Sua queda não é uma prova de que os americanos podem, sim, impor a vontade deles?
Bustani – Houve uma conscientização enorme no Brasil. A cobertura da imprensa inglesa foi estupenda. Isso me deixa muito contente. As vozes ainda são baixas, mas elas existem e estão se levantando contra esse tipo de comportamento. Não é assim que se organiza a comunidade internacional. Quarenta e três países se abstiveram de votar contra a minha saída. Isso indica que houve grande desconforto. Esses países sabem que não deveriam ter apoiado os Estados Unidos. Quem sabe numa nova oportunidade eles tenham a coragem de votar diferente.

Veja – O Brasil almeja um lugar no Conselho de Segurança da ONU há anos. Qual é a importância desse conselho?
Bustani – Pelo seu tamanho populacional e geográfico, potencial econômico, tradição diplomática, história e excedente de dignidade, o Brasil merece esse lugar. Nosso país tem dez vizinhos e vive em paz com eles. Seguimos tradições pacíficas e sempre obedecemos ao direito internacional. O conselho traz prestígio, mas isso não é o mais importante. O Brasil teria a capacidade de participar de maneira bastante direta e eficaz nas decisões sobre a manutenção da paz e da segurança internacional.

Veja – Por que o Brasil não conseguiu ainda?
Bustani – É um processo muito complicado. Primeiro o Brasil mudou de posição. Por algum tempo, o conselho deixou de ser prioridade do governo brasileiro. Nos últimos dois anos, passou a ser importante de novo. Houve entendimentos com a Alemanha, e a Rússia deu apoio explícito. Mas esse é um processo que demorará um pouco.

Veja – Qual foi sua maior vitória?
Bustani – Considero que venci a batalha. Minha mensagem foi entendida e apoiada por um grande número de pessoas. Há um mês, fui ao Brasil e, quando estava saindo de Guarulhos, em São Paulo, um funcionário do aeroporto se dirigiu a mim e disse: "O senhor é o seu Bustani, não é? Só queria dizer que estou com o senhor e não abro".

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