CORREIO BRASILIENSE
                                                    
  Leia a baixo LULA e o aborto 

Brasília, domingo,
17 de março de 2002

SUCESSÃO
De votos e lama

Está aberta a temporada de escândalos de campanha. É mais um capítulo na história do jogo sujo na política, em que as principais linhas se escrevem às vésperas dos pleitos. Maluf, Lula e FHC foram vítimas de ataques sem ética

Ugo Braga
Da equipe do Correio


Quando Fernando Collor de Mello foi tirado da Presidência, em dezembro de 1992, houve quem não perdesse o bom humor. No Congresso, ganhou prestígio a piada de um deputado que prometeu apresentar um projeto reservando a chefia do Executivo federal a um órfão, filho único e solteiro. Assim, garantia, aterrava-se definitivamente o mar de lama federal.
  A idéia do órfão, filho único e solteiro na Presidência contém uma graça jocosa. Mas reflete exatamente o que o imaginário popular teme dos ocupantes do cargo. ‘‘Com uma lei assim, seria mais difícil roubar, não é?’’, diverte-se o cientista político David Fleischer, representante no Brasil da organização não-governamental Transparência Internacional.
  Exatamente por esperar um ser imaculado, a cada quatro anos, o povo se depara com um jogo bruto entre os candidatos à Presidência. O único objetivo é destruir os concorrentes e conquistar o poder aniquilando a reputação alheia. Para tanto, não há regras ou limites. Nem fronteiras: o jogo bruto nas eleições, explica Fleischer, é um fenômeno mundial (leia texto na página 16).

Branco é complicado

  No Brasil, o capítulo inaugural dessa novela remonta a outubro de 1984. O país caminhava para a eleição indireta. Pela primeira vez em vinte anos de regime militar, a oposição tinha chance real de vitória. O governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, aglutinava o apoio do PMDB, PDT e de parte do PDS, partido governista, representado por Paulo Maluf no colégio eleitoral.
  No dia 26 daquele mês, uma sexta-feira, o cacique Mário Juruna, chefe dos Xavantes e deputado federal pelo PDT de Mato Grosso, assombrou o país. Convocou uma entrevista coletiva e exibiu seis maços de notas de cinco mil cruzeiros e um formulário azul, usado pelo Banco do Brasil para contabilizar depósitos. ‘‘Recebi de Galim Eiro pra votar em Maluf’’, contou.
  O formulário mostrava um depósito de trinta milhões de cruzeiros na conta de Juruna. Galim Eiro era Calim Eid, empresário paulista, braço direito de Paulo Maluf. Ou seja, tratava-se ali de um suborno, só que com as veias abertas e sangue jorrando.
  A história completa beira a comédia. Dois meses antes, em sua simplicidade de índio, Juruna foi a Maluf pedir dinheiro emprestado. Encontrou-se com Calim Eid num apartamento do 8º andar do Hotel San Marco, no Setor Hoteleiro Sul. Queria visitar o filho, em Barra do Garças. Eid disse que lhe daria o dinheiro, desde que abandonasse o mandato ou votasse em Maluf dali a cinco meses.
  Juruna recebeu muito mais do que pediu. Não sabia o que fazer com tamanha fortuna, até que o presidente do PDT, Leonel Brizola, soube da história e o abordou. Numa conversa particular, Brizola explicou que o cacique não podia trocar voto por dinheiro. Juruna prometeu devolver tudo. A foto dos milhões de cruzeiros em cima da mesa do índio destruiu as chances do PDS no colégio eleitoral. Passado o furacão, Juruna comentou: ‘‘Branco é complicado’’.

Votos, mentiras e videotape

  A eleição seguinte, a primeira em que a população votou para presidente da República desde o militarismo, é até hoje marco da vileza eleitoral. O ano era 1989. A campanha começou com Brizola na dianteira. Todos os partidos lançaram candidato. O brasileiro nadava gostosamente na democracia, como se ela fosse líquida, uma piscina.
  Ao longo da campanha, Brizola perdeu terreno. Seu espaço foi ocupado por Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, e Collor, do nanico PRN. Na reta final da campanha, Collor, que vencera o primeiro turno, definhava. Lula crescia. Estavam tecnicamente empatados. Até que...
  Até que no dia 13 de dezembro, uma quarta-feira, a atendente de enfermagem Míriam Cordeiro aparece no programa eleitoral gratuito de Collor. Dá um depoimento bombástico. ‘‘Ele (Lula) me ofereceu dinheiro para abortar’’, declarou. Quinze anos antes, Míriam fora namorada de Lula. Da relação, nasceu Lurian. Míriam disse que recebeu a proposta de aborto ao comunicá-lo da gravidez.
  Míriam voltou ao programa do PRN na quinta-feira. Na sexta, Collor e Lula participaram do último debate na TV. Não se tocou no assunto, mas Lula tremia a cada vez que Collor ameaçava abrir uma pasta vermelha que levara para o estúdio. O sábado foi marcado pela edição do Jornal Nacional, da TV Globo, sobre o debate — francamente favorável a Collor. A votação aconteceu no domingo.
  Na ocasião, Lula disse estar surpreso pelo baixo nível atingido pela campanha. Sentiu o golpe. Dormia pouco. Mostrava-se tenso. Pediu, e recebeu, direito de resposta à Justiça Eleitoral. Ao lado de Lurian, apareceu na TV de olhos vermelhos dizendo que não ligava para o julgamento que o adversário fazia dele ou que a ex-namorada fazia dele. Apenas para o da filha. Derrotado na eleição, até hoje evita o assunto.

Apanha Chico, apanha Francisco

  Em 1994, a candidatura petista voltou à ribalta. Lula acabou o primeiro semestre liderando a corrida com 41% de intenção de voto. Fernando Henrique era o segundo, bem atrás, com 19%. Brizola era o terceiro com 7%. Em julho, o real entrou em vigor. No fim do mês, Lula tinha 32% e FHC, 29%.
  O fenômeno da virada nas intenções de voto não veio só com o sucesso do plano econômico. No fim de junho, o senador gaúcho José Paulo Bisol, então filiado ao PSB, candidato a vice-presidente na chapa de Lula, entra no olho de um furacão que acabou consumindo boa parte da energia eleitoral do PT.
  Deputados do governo apresentam à imprensa cópias de quatro emendas ao Orçamento da União assinadas por Bisol. Elas destinavam o equivalente a US$ 8,6 milhões para construir duas pontes na cidade de Buritis, em Minas Gerais. Lá, estava instalada a fazenda Sinos D’Água, comprada por Bisol em 1987.
  O fato ganhou destaque de catástrofe natural no noticiário da época. Bisol, que tornara-se conhecido em todo o país justamente durante a CPI do Orçamento, um ano antes, passou a ser retratado como um político desonesto . Explicou ter assinado as emendas para atender um pedido do prefeito de Buritis, que era do PFL, e que as obras ajudariam a escoar a produção de grãos e leite da Serra da Palmeira.
  Bisol pregava no deserto. Admitiu ter sido ingênuo ao assinar as emendas. Jornais publicaram reportagens desabonadoras sobre sua vida pessoal. Apareceram histórias da juventude. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça, o senador foi retratado como um homem vaidoso, embora um cantor e ator frustrado.
  No dia 5 de agosto, portanto depois de mais de um mês sob ataque diário, José Paulo Bisol renunciou à candidatura a vice-presidente. Aquele mês terminou com as pesquisas mostrando FHC com 43% das intenções de voto e Lula com 23%. ‘‘Eles já haviam destruído o Lula em 89. Em 94, como não tinham mais o que dizer dele, tiveram que me destruir para atingi-lo’’, analisa Bisol, hoje com 73 anos, filiado ao PT, ocupando o cargo de secretário de Justiça e Segurança do Rio Grande do Sul.
  O caso Bisol aconteceu ao mesmo tempo em que o senador Guilherme Palmeira (PFL-AL), então registrado como candidato a vice-presidente na chapa de Fernando Henrique, era acusado de manter ligações ilícitas com empreiteiras. Palmeira foi substituído pelo então senador Marco Maciel (PFL-PE) sem maiores alardes.
  ‘‘É como ser vítima de um estupro, a gente prefere esquecer’’, desabava Bisol, ao falar do assunto hoje. ‘‘Parece uma tempestade, é difuso, você não sabe de onde vem’’, conta. Bisol processa sete empresas de comunicação. Acusa-as de difamação. ‘‘Já ganhei do Zero Hora (jornal gaúcho) e da Editora Três (revista Istoé)’’, afirma. Em Porto Alegre, diz-se que as indenizações somam mais de R$ 800 mil. Os outros processos ainda não acabaram.

Reeleição e farsa em 1998

  No quesito confundir o eleitor, a disputa de 1998 foi imbatível. Um ano antes, mais especificamente em janeiro de 1997, a Constituição havia sido mudada para permitir a reeleição do presidente da República, governadores e prefeitos. Em maio, o jornal Folha de S.Paulo inflamou o ambiente político ao noticiar a compra de parlamentares, para que votassem a favor da reeleição.
  A informação nasceu de uma gravação feita por um dos envolvidos entregue ao jornalista Fernando Rodrigues. Revelou-se uma negociação em que pelo menos cinco deputados federais receberam R$ 200 mil cada para votar ‘‘sim’’. Os parlamentares (Chicão Brígido, do PMDB-AC, e mais Zila Bezerra, Ronivon Santiago, João Maia e Osmir Lima, todos do PFL-AC) teriam acertado o preço com Orleir Camelli, então governador do Acre, e Amazonino Mendes (PFL), governador do Amazonas, coordenados pelo ministro das Comunicações, Sérgio Motta.
  O escândalo aumentou a temperatura política e recheou de suspeição e eleição de 1998, mas não produziu conseqüências graves. Ronivon Santiago e João Maia foram expulsos do PFL e renunciaram aos mandatos. Os demais apostaram no corporativismo parlamentar e se submeteram à corregedoria. Acabaram inocentados.
  Quando a campanha propriamente dita começou, o pastor Caio Fábio d’Araújo Filho, hoje com 46 anos, procurou o ex-governador Leonel Brizola e o ex-ministro Ciro Gomes — candidato a vice-presidente na chapa de Lula e candidato a presidente pelo PPS, respectivamente. Ofereceu-lhes um dossiê com informações sobre uma certa CH, J & T, empresa instalada nas Ilhas Caymann, cujos sócios seriam Fernando Henrique, Sérgio Motta, o governador Mário Covas e oentão ministro da Saúde, José Serra.
  Brizola e Ciro consideraram o material inconsistente e o rejeitaram. Mas a história tornou-se pública e acabou se transformando num inquérito da Polícia Federal. O ex-prefeito Paulo Maluf e o ex-presidente do Banco do Brasil Lafayette Coutinho também tentaram vender o dossiê Caymann, comprovadamente falso. Caio Fábio, Maluf e Coutinho estão sendo investigados pelo Ministério Público e pela Polícia Federal. O inquérito corre em segredo de Justiça e será concluído em 90 dias.


Sucessão Lei reduz baixaria

Segundo especialistas, legislação eleitoral brasileira está longe do ideal, mas consegue impedir grandes danos. Eleições já foram anuladas porque candidatos divulgaram mentiras contra os adversários
Ugo Braga
Da equipe do Correio


O jurista Eduardo Alckmin, ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), considera as baixarias de campanha naturais da democracia. Segundo ele, a legislação brasileira coíbe os abusos da mesma forma que no resto do mundo. ‘‘A lei não é a ideal, mas é aceitável’’, sentencia.
  Alckmin dá exemplos. Sem citar nomes, conta a história de uma eleição para prefeito de uma cidade do interior. Na madrugada anterior à votação, o oponente espalhou panfletos com uma história falsa, comprometendo a honra do candidato do prefeito. Com a manobra, o desonesto venceu a eleição, mas o TSE a cancelou. ‘‘A mentira foi decisiva no resultado da eleição’’, argumenta o jurista.
  Quanto aos casos menos graves, Alckmin lembra que o direito de resposta é instrumento apropriado. Ele cita, por exemplo, o caso de Míriam Cordeiro, ex-namorada de Luiz Inácio Lula da Silva, na eleição de 1989 (leia texto na página 14). ‘‘Naquele caso, bem ou mal o Lula ele teve a chance de se explicar.’’ No mais, lembra o ex-ministro, os tribunais eleitorais de qualquer parte do mundo não têm como impedir a divulgação de notícias. ‘‘Cabe ao eleitor acreditar ou não em certas afirmações.’’
  Como na eleição para governador do Piauí, em 1998. O governador Mão Santa (PMDB) disputava a reeleição. Seu adversário era o senador Hugo Napoleão (PFL). Dias antes da votação, houve um assassinato bárbaro na capital Teresina. Jornais simpáticos a Napoleão publicaram notícias ligando o assassinato ao governador Mão Santa, que mesmo assim acabou vencendo a eleição.

Poder econômico
Derrotado, Napoleão reclamou à Justiça Eleitoral o uso do poder econômico pelo governador. O Tribunal Regional Eleitoral (TRE) concedeu-lhe ganho de causa. O TSE confirmou a sentença. Mão Santa foi destituído do cargo no ano passado. Hugo Napoleão governa o Piauí atualmente.
  Eduardo Alckmin, que hoje advoga na área eleitoral, diz que o TSE julgará nos próximos dias um processo examinando o caso das notícias falsas publicadas nos jornais piauienses. Trata-se de um recurso de Mão Santa tentando recuperar a cadeira de governador. Para tanto, usará a mesmíssima legislação eleitoral que o fez ceder o lugar ao adversário.
  Cientistas políticos ouvidos pelo Correio pensam de forma semelhante ao jurista. Acham que as baixarias das campanhas não são propriamente estimuladas pela legislação eleitoral brasileira. Citam os casos da Alemanha e da França, onde o ex-chanceler Helmut Kohl e o presidente Jacques Chirac enfrentam problemas com caixa 2 e financiamento de campanha (leia reportagem abaixo). Ou seja, as falcatruas eleitorais não são exclusividade do Brasil.
  O deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), segundo parlamentar mais antigo da Câmara dos Deputados, também não vê problemas estruturais no sistema eleitoral. Sobre o último escândalo nacional — a busca e apreensão na empresa da governadora do Maranhão, Roseana Sarney, possivelmente originada por arapongas a serviço do PSDB —, ele diz que só está preocupado com dois fatos: o desvio de dinheiro público e o uso de meios ilícitos pelo presidente da República em favor do candidato de seu partido. ‘‘Se as duas coisas ficarem provadas, é cadeia e impeachment’’, defende.

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