Ugo Braga
Da equipe do Correio
Quando Fernando Collor de Mello foi tirado da
Presidência, em dezembro de 1992, houve quem não perdesse o bom
humor. No Congresso, ganhou prestígio a piada de um deputado que
prometeu apresentar um projeto reservando a chefia do Executivo
federal a um órfão, filho único e solteiro. Assim, garantia,
aterrava-se definitivamente o mar de lama federal.
A idéia do órfão, filho único e solteiro na Presidência
contém uma graça jocosa. Mas reflete exatamente o que o imaginário
popular teme dos ocupantes do cargo. ‘‘Com uma lei assim, seria
mais difícil roubar, não é?’’, diverte-se o cientista político
David Fleischer, representante no Brasil da organização não-governamental
Transparência Internacional.
Exatamente por esperar um ser imaculado, a cada quatro
anos, o povo se depara com um jogo bruto entre os candidatos à Presidência.
O único objetivo é destruir os concorrentes e conquistar o poder
aniquilando a reputação alheia. Para tanto, não há regras ou
limites. Nem fronteiras: o jogo bruto nas eleições, explica
Fleischer, é um fenômeno mundial (leia texto na página 16).
Branco é complicado
No Brasil, o capítulo inaugural dessa novela remonta a
outubro de 1984. O país caminhava para a eleição indireta. Pela
primeira vez em vinte anos de regime militar, a oposição tinha
chance real de vitória. O governador de Minas Gerais, Tancredo Neves,
aglutinava o apoio do PMDB, PDT e de parte do PDS, partido governista,
representado por Paulo Maluf no colégio eleitoral.
No dia 26 daquele mês, uma sexta-feira, o cacique Mário
Juruna, chefe dos Xavantes e deputado federal pelo PDT de Mato Grosso,
assombrou o país. Convocou uma entrevista coletiva e exibiu seis maços
de notas de cinco mil cruzeiros e um formulário azul, usado pelo
Banco do Brasil para contabilizar depósitos. ‘‘Recebi de Galim
Eiro pra votar em Maluf’’, contou.
O formulário mostrava um depósito de trinta milhões de
cruzeiros na conta de Juruna. Galim Eiro era Calim Eid, empresário
paulista, braço direito de Paulo Maluf. Ou seja, tratava-se ali de um
suborno, só que com as veias abertas e sangue jorrando.
A história completa beira a comédia. Dois meses antes,
em sua simplicidade de índio, Juruna foi a Maluf pedir dinheiro
emprestado. Encontrou-se com Calim Eid num apartamento do 8º andar do
Hotel San Marco, no Setor Hoteleiro Sul. Queria visitar o filho, em
Barra do Garças. Eid disse que lhe daria o dinheiro, desde que
abandonasse o mandato ou votasse em Maluf dali a cinco meses.
Juruna recebeu muito mais do que pediu. Não sabia o que
fazer com tamanha fortuna, até que o presidente do PDT, Leonel
Brizola, soube da história e o abordou. Numa conversa particular,
Brizola explicou que o cacique não podia trocar voto por dinheiro.
Juruna prometeu devolver tudo. A foto dos milhões de cruzeiros em
cima da mesa do índio destruiu as chances do PDS no colégio
eleitoral. Passado o furacão, Juruna comentou: ‘‘Branco é
complicado’’.
Votos, mentiras e videotape
A eleição seguinte, a primeira em que a população
votou para presidente da República desde o militarismo, é até hoje
marco da vileza eleitoral. O ano era 1989. A campanha começou com
Brizola na dianteira. Todos os partidos lançaram candidato. O
brasileiro nadava gostosamente na democracia, como se ela fosse líquida,
uma piscina.
Ao longo da campanha, Brizola perdeu terreno. Seu espaço
foi ocupado por Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, e Collor, do nanico
PRN. Na reta final da campanha, Collor, que vencera o primeiro turno,
definhava. Lula crescia. Estavam tecnicamente empatados. Até que...
Até
que no dia 13 de dezembro, uma quarta-feira, a atendente de enfermagem
Míriam Cordeiro aparece no programa eleitoral gratuito de Collor. Dá
um depoimento bombástico. ‘‘Ele (Lula) me ofereceu dinheiro para
abortar’’, declarou. Quinze anos antes, Míriam fora namorada de
Lula. Da relação, nasceu Lurian. Míriam disse que recebeu a
proposta de aborto ao comunicá-lo da gravidez.
Míriam voltou ao programa do PRN na quinta-feira. Na
sexta, Collor e Lula participaram do último debate na TV. Não se
tocou no assunto, mas Lula tremia a cada vez que Collor ameaçava
abrir uma pasta vermelha que levara para o estúdio. O sábado foi
marcado pela edição do Jornal Nacional, da TV Globo, sobre o debate
— francamente favorável a Collor. A votação aconteceu no domingo.
Na ocasião, Lula disse estar surpreso pelo baixo nível
atingido pela campanha. Sentiu o golpe. Dormia pouco. Mostrava-se
tenso. Pediu, e recebeu, direito de resposta à Justiça Eleitoral. Ao
lado de Lurian, apareceu na TV de olhos vermelhos dizendo que não
ligava para o julgamento que o adversário fazia dele ou que a
ex-namorada fazia dele. Apenas para o da filha. Derrotado na eleição,
até hoje evita o assunto.
Apanha Chico, apanha Francisco
Em 1994, a candidatura petista voltou à ribalta. Lula
acabou o primeiro semestre liderando a corrida com 41% de intenção
de voto. Fernando Henrique era o segundo, bem atrás, com 19%. Brizola
era o terceiro com 7%. Em julho, o real entrou em vigor. No fim do mês,
Lula tinha 32% e FHC, 29%.
O fenômeno da virada nas intenções de voto não veio só
com o sucesso do plano econômico. No fim de junho, o senador gaúcho José
Paulo Bisol, então filiado ao PSB, candidato a
vice-presidente na chapa de Lula, entra no olho de um furacão que
acabou consumindo boa parte da energia eleitoral do PT.
Deputados do governo apresentam à imprensa cópias de
quatro emendas ao Orçamento da União assinadas por Bisol. Elas
destinavam o equivalente a US$ 8,6 milhões para construir duas pontes
na cidade de Buritis, em Minas Gerais. Lá, estava instalada a fazenda
Sinos D’Água, comprada por Bisol em 1987.
O fato ganhou destaque de catástrofe natural no noticiário
da época. Bisol, que tornara-se conhecido em todo o país justamente
durante a CPI do Orçamento, um ano antes, passou a ser retratado como
um político desonesto . Explicou ter assinado as emendas para atender
um pedido do prefeito de Buritis, que era do PFL, e que as obras
ajudariam a escoar a produção de grãos e leite da Serra da
Palmeira.
Bisol pregava no deserto. Admitiu ter sido ingênuo ao
assinar as emendas. Jornais publicaram reportagens desabonadoras sobre
sua vida pessoal. Apareceram histórias da juventude. Desembargador
aposentado do Tribunal de Justiça, o senador foi retratado como um
homem vaidoso, embora um cantor e ator frustrado.
No dia 5 de agosto, portanto depois de mais de um mês sob
ataque diário, José Paulo Bisol renunciou à candidatura a
vice-presidente. Aquele mês terminou com as pesquisas mostrando FHC
com 43% das intenções de voto e Lula com 23%. ‘‘Eles já haviam
destruído o Lula em 89. Em 94, como não tinham mais o que dizer
dele, tiveram que me destruir para atingi-lo’’, analisa Bisol,
hoje com 73 anos, filiado ao PT, ocupando o cargo de secretário de
Justiça e Segurança do Rio Grande do Sul.
O caso Bisol aconteceu ao mesmo tempo em que o senador
Guilherme Palmeira (PFL-AL), então registrado como candidato a
vice-presidente na chapa de Fernando Henrique, era acusado de manter
ligações ilícitas com empreiteiras. Palmeira foi substituído pelo
então senador Marco Maciel (PFL-PE) sem maiores alardes.
‘‘É como ser vítima de um estupro, a gente prefere
esquecer’’, desabava Bisol, ao falar do assunto hoje. ‘‘Parece
uma tempestade, é difuso, você não sabe de onde vem’’, conta.
Bisol processa sete empresas de comunicação. Acusa-as de difamação.
‘‘Já ganhei do Zero Hora (jornal gaúcho) e da Editora Três
(revista Istoé)’’, afirma. Em Porto Alegre, diz-se que as
indenizações somam mais de R$ 800 mil. Os outros processos ainda não
acabaram.
Reeleição e farsa em 1998
No quesito confundir o eleitor, a disputa de 1998 foi
imbatível. Um ano antes, mais especificamente em janeiro de 1997, a
Constituição havia sido mudada para permitir a reeleição do
presidente da República, governadores e prefeitos. Em maio, o jornal
Folha de S.Paulo inflamou o ambiente político ao noticiar a compra de
parlamentares, para que votassem a favor da reeleição.
A informação nasceu de uma gravação feita por um dos
envolvidos entregue ao jornalista Fernando Rodrigues. Revelou-se uma
negociação em que pelo menos cinco deputados federais receberam R$
200 mil cada para votar ‘‘sim’’. Os parlamentares (Chicão Brígido,
do PMDB-AC, e mais Zila Bezerra, Ronivon Santiago, João Maia e Osmir
Lima, todos do PFL-AC) teriam acertado o preço com Orleir Camelli,
então governador do Acre, e Amazonino Mendes (PFL), governador do
Amazonas, coordenados pelo ministro das Comunicações, Sérgio Motta.
O escândalo aumentou a temperatura política e recheou de
suspeição e eleição de 1998, mas não produziu conseqüências
graves. Ronivon Santiago e João Maia foram expulsos do PFL e
renunciaram aos mandatos. Os demais apostaram no corporativismo
parlamentar e se submeteram à corregedoria. Acabaram inocentados.
Quando a campanha propriamente dita começou, o pastor
Caio Fábio d’Araújo Filho, hoje com 46 anos, procurou o
ex-governador Leonel Brizola e o ex-ministro Ciro Gomes — candidato
a vice-presidente na chapa de Lula e candidato a presidente pelo PPS,
respectivamente. Ofereceu-lhes um dossiê com informações sobre uma
certa CH, J & T, empresa instalada nas Ilhas Caymann, cujos sócios
seriam Fernando Henrique, Sérgio Motta, o governador Mário Covas e
oentão ministro da Saúde, José Serra.
Brizola e Ciro consideraram o material inconsistente e o
rejeitaram. Mas a história tornou-se pública e acabou se
transformando num inquérito da Polícia Federal. O ex-prefeito Paulo
Maluf e o ex-presidente do Banco do Brasil Lafayette Coutinho também
tentaram vender o dossiê Caymann, comprovadamente falso. Caio Fábio,
Maluf e Coutinho estão sendo investigados pelo Ministério Público e
pela Polícia Federal. O inquérito corre em segredo de Justiça e será
concluído em 90 dias.
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