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Bento 16 e a guerra na
igreja
Existem duas posições
claramente opostas que, na prática, podem se entrelaçar
LEONARDO BOFF
ESPECIAL PARA A FOLHA
AS GUERRAS não existem
apenas no mundo. Dentro da igreja há também uma guerra de baixa
intensidade. Ela faz muitas vítimas, com os instrumentos adequados da
guerra religiosa, escondidos sob palavras, não raro, piedosas e
espirituais. Só para dar um exemplo pessoal: quando fui condenado pelo
então cardeal Joseph Ratzinger em 1985 por causa do meu livro
"Igreja: carisma e poder", foi-me imposto o que ele denominou
de "silêncio obsequioso".
Esse eufemismo implicava muita violência: deposição de cátedra, remoção
de editor religioso da Vozes, da redação da "Revista Eclesiástica
Brasileira", proibição severa de falar, dar entrevistas, escrever
e publicar sobre qualquer assunto.
Objetivamente "obsequioso" não possui nada de obsequioso.
O mesmo ocorreu com o teólogo da libertação Jon Sobrino, de El
Salvador, condenado em fevereiro deste ano. Recebeu apenas uma
"notificação". Esta inocente palavra, "notificatio",
esconde violência porque ele não pode mais falar, nem dar aulas,
conceder entrevistas e acompanhar qualquer trabalho pastoral. O vitimado
por uma condenação é "moralmente" morto, pois vem colocado
sob suspeita geral, tolhido, isolado e psicologicamente submetido a
graves transtornos, o que levou a alguns a terem neuroses e a um deles,
famoso, perseguido por idéias de suicídio.
Nós fomos, no mínimo, caçados e anulados, pois um teólogo possui
apenas como instrumento de trabalho a palavra escrita e falada. E estas
lhe foram seqüestradas, coisa que conhecemos das ditaduras militares.
O que foi escrito acima parece irrelevante, pois é algo pessoal, mas não
deixa de ser ilustrativo da guerra religiosa vigente dentro da Igreja.
Nela o então cardeal Ratzinger era general. Hoje como papa é o
comandante em chefe. Qual é este embate? É importante referi-lo para
entender palavras e advertências do papa e a partir de que modelo de
teologia e de Igreja constrói o seu discurso.
Dito de uma forma simplificadora, mas real: há na igreja duas opções
claramente opostas, o que não impede que, na prática, possam se
entrelaçar. Face ao mundo, à cultura e à sociedade há a atitude de
confronto ou de diálogo.
A partir da Reforma no século 16 predominou na Igreja Católica romana
a atitude de confronto: primeiro com as Igrejas protestantes (evangélicas)
e depois com a modernidade.
Face à Reforma houve excomunhões, e face à modernidade, anátemas e
condenações de coisas que nos parecem até risíveis: contra a ciência,
a democracia, os direitos humanos, a industrialização. A Igreja se
havia transformado numa fortaleza contra as vagas de reformismo,
secularismo, modernismo e relativismo. Missão da igreja, segundo esse
modelo do confronto, é testemunhar as verdades eternas, anunciar a
Cristo como o único Redentor da humanidade e a Igreja sua única e
exclusiva mediadora, fora da qual não há salvação.
Em seu documento de 2000, Dominus Jesus, o cardeal Ratzinger reafirma
tal visão com a máxima clareza e laivos de fundamentalismo. Tudo é
centralizado no Cristo. Esta atitude belicosa predominou até os anos 60
do século passado quando foi eleito um papa ancião, quase
desconhecido, mas cheio de coração e bom senso, João 23. Seu propósito
era passar do anátema ao diálogo. Quis escancarar as portas e janelas
da Igreja para arejá-la. Considerava blasfêmia contra o Espírito
Santo imaginar que os modernos só pensam erros e praticam o mal.
Há bondade no mundo, como há maldade na Igreja. Importa é dialogar,
intercambiar e aprender um do outro. A Igreja que evangeliza deve ela
mesma ser evangelizada por tudo aquilo que de bom, honesto, verdadeiro e
sagrado puder ser identificado na história humana.
Deus mesmo chega sempre antes do missionário, pois o Espírito Criador
sopra onde quiser e está sempre presente nas buscas humanas suscitando
bondade, justiça, compaixão e amor em todos. A figura do Espírito
ganha centralidade.
Fruto da opção pelo diálogo foi o Concílio Vaticano 2º (1962-1965),
que representou um acerto de contas com a Reforma pelo ecumenismo e com
a modernidade pelo mútuo reconhecimento e pela colaboração em vista
de algo maior que a própria Igreja, uma humanidade mais dignificada e
uma Terra mais cuidada.
Este "aggiornamento" trouxe grande vitalidade em toda a
Igreja, especialmente na América Latina, que criou espaço para aquilo
que se chamou de Igreja da base ou da libertação e da Teologia da
Libertação. Mas acirrou também as frentes.
Grupos conservadores, especialmente incrustados na burocracia do
Vaticano, conseguiram se articular e organizaram um movimento de
restauração, de volta à grande tradição.
Este grupo foi enormemente reforçado sob João Paulo 2º, que vinha da
resistência polonesa ao marxismo. Chamou como braço direito e
principal conselheiro, seu amigo, o teólogo Joseph Ratzinger,
elevando-o diretamente ao cardinalato e fazendo-o presidente da Congregação
para a Doutrina da Fé, a ex-Inquisição.
Aí se processou de forma sistemática, vinda de cima, uma verdadeira
Contra-Reforma Católica. O próprio cardeal Ratzinger no seu conhecido
"Rapporto sulla fede", de 1985, um verdadeiro balanço da fé,
dizia claramente: "A restauração que propiciamos busca um novo
equilíbrio depois dos exageros e de uma abertura indiscriminada ao
mundo".
Ele elaborou teologicamente a opção pelo confronto a partir de sua
formação de base, o agostinismo, sobre o qual fez duas teses
minuciosamente trabalhadas. Notoriamente Santo Agostinho opera um
dualismo na visão do mundo e da Igreja. Por um lado está a cidade de
Deus e por outro a cidade dos homens, por uma parte a natureza decaída
e por outra, a graça sobrenatural.
O Adão decaído não pode redimir-se por si mesmo, seja pelo trabalho
religioso e ético (heresia do pelagianismo) seja por seu empenho social
e cultural.
Precisa do Redentor. Ele se continua e se faz presente pela Igreja, sem
a qual nada ganha altura sobrenatural e se salva.
Em razão desta chave de leitura, o papa Bento 16 se confronta com a
modernidade, vendo nela a arrogância do homem buscando sua emancipação
por próprias forças. Por mais valores que ela possa apresentar, não são
suficientes, pois não alcançam o nível sobrenatural, único caráter
realmente emancipador. Nela vê mais que tudo secularismo, materialismo
e relativismo. Essa é também sua dificuldade com a Teologia da Libertação.
A libertação social, econômica e política que pretendemos, segundo
ele, não é verdadeira libertação, porque não passa pela mediação
do sobrenatural.
Para concluir, se o atual papa tivesse assumido uma teologia do Espírito,
coisa ausente em sua produção teológica, teria uma leitura menos
pessimista da modernidade.
No atual momento se dá o forte embate entre essas duas opções. A
Igreja latino-americana pende mais pela opção do diálogo. Esta é
mais adequada à cultura brasileira que não é fundamentalista nem dogmática,
mas profundamente relacional e dialogal com todas as correntes
espirituais.
Somos naturalmente sincréticos na convicção de que em todos os
caminhos espirituais há bondade para além dos desvios e que,
definitivamente, tudo acaba em Deus.
Não parece ser esta a opção de Bento 16: seus discursos enfatizam a
construção da Igreja em sua forte identidade para que seu testemunho
seja vigoroso e possa levar valores perenes a um mundo carente deles,
como se viu claramente em seu discurso aos bispos brasileiros na
catedral de São Paulo.
Essa Igreja é necessariamente de poucos, coisa reafirmada pelo teólogo
Ratzinger em muitas de suas obras. Mas esses poucos devem ser santos,
zelosos e comprometido com a missão de orientar e conduzir os muitos,
sem se deixar contaminar por eles e pelo mundo.
Ocorre que esses poucos nem sempre são bons. Haja vista os padres pedófilos.
Por isso, a Igreja precisa renunciar a certa arrogância, ser mais
humilde e confiar que o Espírito e o Cristo cósmico dirijam seus
passos e os da humanidade por caminhos com sentido e vida.
LEONARDO BOFF é teólogo da
libertação e escritor. Em 1985, foi condenado pelo então cardeal
Joseph Ratzinger ao "silêncio obsequioso"
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