por Natalia Viana
Esse texto poderia começar de muitos jeitos, mas acho que o melhor
é começar pelo sábado, 26 de janeiro de 2008. Eu, sentada ao lado do
editor do jornal britânico Independent, onde trabalhei durante alguns
meses, anunciava minha saída e aproveitava para perguntar se a eles
interessariam reportagens free-lancer sobre a América do Sul, que eu
poderia fazer quando voltasse. A resposta:
- Olha, ainda vale a velha regra: mil peruanos equivalem a 10 franceses.
Então é assim, se tiver um acidente, um desastre muito grande...
A frase não me surpreendeu. Não foram poucas às vezes, ao longo desse
ano e meio vivendo em Londres, em que ouvi jornalistas me dizendo
claramente que à imprensa inglesa não interessa a América Latina. Mas
ela apontou para uma coisa seriíssima que está acontecendo com o nosso
próprio jornalismo internacional. Explico.
Com a falta de dinheiro na maioria das empresas de mídia no Brasil, e
ao mesmo tempo com o advento da internet e dos canais de notícias 24
horas, a notícia internacional, se antes era mercadoria, agora virou
mercadoria baratíssima.
Para preencher tanto espaço em branco, em tão pouco tempo, os veículos
optaram pelos serviços das agências internacionais, um punhado de
empresas – todas sediadas em países ricos – que dizem ao mundo todo
o que é notícia e o que não é. Assim, a Reuters, de origem alemã e
sede em Londres, a CNN americana, a AFP francesa, a BBC inglesa –
financiada, não por acaso, pelo Ministério do Exterior britânico –
difundem a sua visão de mundo, a sua própria cultura e o seu jeito de
fazer jornalismo.
Não é negativo o advento das agências de notícias. É fantástico
poder ter informações rápidas de vários cantos do globo com um grau
razoável de confiabilidade. O problema é como o nosso jornalismo
internacional tem cada vez mais se baseado apenas no que dizem essas agências.
Funciona assim: o repórter de uma agência escreve a matéria,
entrevistando essa e aquela pessoa que considera relevante. Seu texto
então é editado por alguém na sede, invariavelmente em um país do
norte, e checado contra as informações de outra dessas agências. Se há
um serviço em português, os redatores terão que simplesmente traduzir
a notícia, e assim ela chega a nós.
Hoje, no caso do Brasil, é cada vez mais comum que as publicações diárias
usem esses mesmos relatos, vindos de diferentes agências, para compor a
reportagem que virá na edição do dia seguinte. O mesmo acontece com
as revistas e com os canais de notícia da TV.
Há exemplos chocantes, como o fato de muitas informações que lemos
sobre a América do Sul terem sido coletadas por repórteres americanos,
ingleses, franceses, enviados para a Europa e traduzidas antes de serem
reescritas para o nosso consumo. Estamos, na prática, terceirizando a
nossa visão sobre o mundo.
Um dos tristes resultados desse novo modelo é a morte lenta e dolorosa
da figura do nosso correspondente internacional. Há ainda ótimos
correspondentes, claro, mas cada vez em menor número.
Os que ainda sonham testemunhar e reportar coisas significativas que
acontecem no mundo têm que se contentar com um pagamento magríssimo.
Em conseqüência, sou testemunha da explosão de novos tipos de
jornalistas até então inéditos, como a correspondente-e-garçonete,
correspondente-e-carregador-de-malas, correspondente-e-babá. Sendo,
sempre, o subemprego o trabalho principal e o jornalismo quando se tem
tempo.
É o colonialismo noticioso: embora a globalização tenha trazido
melhores relações internacionais para o Brasil, com negócios,
turismo, imigração, etc, estamos aceitando sempre a versão da história
que nos está sendo contada pelas agências, condizente com a sua linha
editorial, e, mais a fundo, com os seus preconceitos.
Um bom exemplo foi a avidez com que a imprensa brasileira acompanhou o
sumiço da menina inglesa Madeleine MCcann, em Portugal, no ano passado.
Por aqui, a cobertura foi obsessiva, pra pegar leve. A cada dia novos
detalhes, na maioria infundados, apareciam e eram reproduzidos
incessantemente por sites brasileiros, canais de TV e até jornais.
Engolimos sem refletir que, na balança das agências globais, a vida de
uma linda menininha inglesa sempre vai valer mais do que cem Marias
brasileiras.
Foi isso que me veio à cabeça ouvindo a resposta do colega do
Independent. Antes de agradecê-lo pela honestidade – e ir embora com
o rabinho entre as pernas – respondi:
- Claro, mil peruanos valem o mesmo que dez franceses, ou uma Madeleine.
Ao que ele consentiu com a cabeça e um sorriso sem-graça.
Natalia Viana é jornalista. |